domingo, 4 de julho de 2010

Freud sobre a cultura

Texto extraído de “As Resistências à Psicanálise” ( ESB. Vol. IXX )

“A civilização humana repousa em dois pilares, dos quais um é o controle das forças naturais e o outro, a restrição de nossos instintos. O trono do governante repousa sobre escravos agrilhoados. Entre os componentes instintuais que são assim colocados a seu serviço, os instintos sexuais, no sentido mais estrito da palavra, são conspícuos por sua força e selvageria. Que desgraça, se eles se libertassem! O trono seria derrubado e o governante, calcado sob pés. A sociedade está ciente disso - e não permitirá que o assunto seja mencionado.
Mas por que não? Que prejuízo a discussão pode causar? A psicanálise jamais disse palavra em favor dos instintos desagrilhoantes que danificariam nossa comunidade; pelo contrário, emitiu uma advertência e uma exortação para que corrigíssemos nossos modos.
A sociedade, porém, se recusa a consentir em ventilar a questão, porque tem uma má consciência sob mais de um aspecto. Em primeiro lugar, ela estabeleceu um elevado ideal de moralidade - sendo essa restrição dos instintos - e insiste em que todos os seus membros preencham esse ideal, sem preocupar-se com a possibilidade de que a obediência possa pesar onerosamente sobre o indivíduo. Ela sequer é suficientemente opulenta ou bem organizada para poder compensar o indivíduo pela quantidade de sua renúncia instintual. Conseqüentemente, resta ao indivíduo decidir como pode obter, pelo sacrifício que fez, uma compensação, suficiente para capacitá-lo a preservar seu equilíbrio mental. Em geral, ele no entanto é obrigado a viver psicologicamente além de seus recursos, ao passo que as reivindicações insatisfeitas de seus instintos o fazem sentir as exigências da civilização como uma pressão constante sobre ele. Assim, a sociedade sustenta uma condição de hipocrisia cultural, fadada a ser acompanhada de um sentimento de insegurança e de uma necessidade de preservar aquilo que é uma situação inegavelmente precária com proibir a crítica e a discussão. Essa linha de pensamento aplica-se a todos os impulsos instintuais, incluindo portanto os egoístas. A questão sobre ela aplicar-se ou não a todas as formas possíveis de civilização, e não meramente àquelas que evolveram até agora, não pode ser debatida aqui. Com referência aos instintos sexuais no sentido mais estrito, há ainda o ponto de que, na maioria das pessoas, eles são insuficientemente domados, e isso de uma forma psicologicamente errada; estão portanto mais aptos a desencadear-se do que os demais.
A psicanálise revelou as fragilidades desse sistema e recomendou que ele fosse alterado. Propôs uma redução no rigor com que os instintos são reprimidos, e que correspondentemente se desse mais desempenho à veracidade. Uma quantidade maior de satisfação deveria ser facultada a certos impulsos instintuais em cuja supressão a sociedade excedeu um tanto; no caso de alguns outros, o método ineficiente de suprimi-los mediante a repressão deveria ser substituído por algum procedimento melhor e mais seguro. Em resultado dessas críticas a psicanálise é encarada como ‘inamistosa à cultura’ e foi colocada sob um anátema como ‘perigo social’. Essa resistência não pode durar para sempre. Nenhuma instituição humana pode, a longo prazo, escapar à influência da crítica legítima, contudo a atitude dos homens para com a psicanálise ainda é dominada por esse temor, que dá livre curso às suas paixões e diminui seu poder de argumento lógico.
Com sua teoria dos instintos a psicanálise ofendeu os sentimentos dos indivíduos, na medida em que se consideravam como membros da comunidade social; outro ramo de sua teoria estava destinado a ferir toda pessoa individualmente no ponto mais sensível de seu próprio desenvolvimento psíquico. A psicanálise livrou-se de uma vez por todas do conto de fadas de uma infância assexual. Demonstrou o fato de que interesses e atividades sexuais ocorrem em crianças pequenas desde o início de suas vidas. Mostrou por que transformações essas atividades passam, como, pela idade de cinco anos, eles sucumbem à inibição e como, da puberdade em diante, entram a serviço da função reprodutiva.
Reconheceu que a primeira vida sexual infantil atinge seu ápice naquilo que se conhece como complexo de Édipo (uma ligação emocional da criança ao genitor do sexo oposto, acompanhada por uma atitude de rivalidade para com o do mesmo sexo) e que, nesse período da vida, tal impulso se amplia, desinibido, para um desejo sexual direto. A confirmação disso é tão facilmente possível, que somente esforços supremos poderiam conseguir desprezá-lo. Com efeito, todo indivíduo passou por essa fase; posteriormente, porém, reprimiu energicamente seu teor e conseguiu esquecê-la. Dessa época pré-histórica da existência do indivíduo restou um horror ao incesto e um sentimento enorme de culpa. É possível que algo muito semelhante ocorresse na época pré-histórica da espécie humana como um todo e que os primórdios da moralidade, da religião e da ordem social estejam intimamente vinculados à superação dessa era primeva.
Para os adultos, sua pré-história parece tão ingloriosa que recusam permitir-se que os façam lembrar-se dela: ficaram furiosos quando a psicanálise tentou levantar o véu de amnésia de seus anos de infância. Havia apenas uma saída: o que a psicanálise asseverava tinha de ser falso e aquilo com pretensões de nova ciência havia que ser um tecido de fantasias e deformações.”



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