sábado, 18 de julho de 2009

O Cão que Morreu Pelas Mãos do Sherlock


Belo dia de sol, fui comprar pão nesses mercados que hoje em dia vendem de salgadinhos baratos até livros (também baratos); não quis o salgadinho. Comprei, dois livros, ao invés disso. E tenho certeza que fiquei muitíssimo mais bem servido. Um dos que comprei foi 'A Moreninha' (Joaquim Manuel De Macedo), a pedidos da minha irmã. O outro foi essa dita mais célebre história do Sherlock. Com as férias todas ainda pela frente (e isso são quase duas semanas) eu precisava de alguma coisa que me distraísse, e como logicamente eu não poderia usar a biblioteca da minha escola, acabei comprando, por assim dizer, o primeiro livro que vi pela frente. Eu já tinha em casa algumas outras histórias do famoso detetive da literatura mundial, mesmo assim, fiquei curioso para ver se a propaganda fazia algum sentido e se essa era realmente a melhor história do Holmes.
Um dos primeiros fatos que me chamaram a atenção é que pode-se perceber que o Dr. Watson é uma ferramenta usada por Doyle para moldar as emoções do leitor. Além de narrador, Watson é o próprio leitor, o molde de como Doyle quer que o leitor se sinta diante da sua narração. É quem admira Sherlock, e diz ao leitor: -Nossa, como ele é tão mais inteligente que você, reles leitor passivo.
Para mim, o primeiro crítico literário a julgar Doyle foi ele mesmo, através dessa sua personagem. É o caro Watson também que se assusta com o terror barato criado por Conan Doyle, e salvo o devido mérito à este ícone das histórias 'de detetive', não obstante toda a gama de emoções expressa por Watson, ainda não fui capaz de me envolver nas aventuras de Sherlock. Acho as histórias tolas, sobretudo o desfecho das investigações de Sherlock. A forma como Doyle insere as pistas conclusivas para desvendar seus mistérios não me agrada. Ficaria muitíssimo mais interessado se ao ler a história pudesse encontrar pistas para solucionar os crimes, e não ter de esperá-las somente depois que este já houvesse sido solucionado por Sherlock.
Contudo, deixando de lado minhas birras pessoais com as ferramentas literárias do autor, devo confessar que trata-se, no geral, de uma leitura interessante; excessivamente passiva, porém deve haver quem goste, apesar de não ser em particular o meu caso.
Apesar do que já mencionei, Conan Doyle não me desagrada totalmente. A respeito com que encara as crenças e superstições populares inglesas e como as derruba com embasamento científico é admirável. Nesse caso, a besta dos infernos da tradição popular virou um grande cão de caça misto com um mastim, temível só pelo tamanho, não fosse também o truque de colocar fósforo na boca e pelo do animal, para fazê-lo soltar fogo, como um enviado do inferno.
Boa obra para nos lembrar que, como disse Sherlock: “O mundo está cheio de coisas óbvias que ninguém nunca observa casualmente”.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Incidente em Antares


Lembro que sempre ficava curiosíssimo ao ouvir o nome de Érico Veríssimo. Isso porque sou fã apostólico do Luís Fernando Veríssimo, grande escritor cotemporâneo. Coloquei essa associação do Érico ao seu filho, o Luís Fernando, de lado para começar a minha primeira leitura de uma obra sua - por sinal, sua última produzida. Porém, no decorrer da leitura, não pude me manter indiferente à algumas características comuns aos dois Veríssimos. Senso de humor foi pra mim uma das mais nítidas, pois logo lembro de humor ao pensar em L. Fernando Veríssimo. Com a diferença que se para o pai, Érico, o humor é uma ferramenta para sua literatura, um modesto tempero para seus pratos, para o L. Fernando o humor é tão forte, tão concreto que quase passa a ser o prato principal.
Me lembro também que fui de certa forma preconceituoso com o Érico. Meu interesse por estudar de fato sua obra foi quase forçado - Incidente em Antares é quesito obrigatório no meu vestibular-, e talvez isso tenha contribuído para minha má vontade inicial. À princípio, não me parecia poder ser tão célebre um livro que tinha como eixo (segundo a contra-capa do próprio livro) a 'ressurreição' de sete cadáveres, numa sexta-feira treze somente com o fim de serem os próprios interessados em seu direito de serem enterrados. Contudo, se à princípio à obra não me despertou grande interesse, inversamente proporcional foi o proveito que tirei deste livro.
Érico V. não se limitou a fazer apenas uma grande obra literária, traçando também um grande painel social, cultural, religioso e histórico da sociedade - seja da sociedade antarense, bem como da sociedade brasileira. E os valores postos em julgamento na obra não se mostram vigentes somente na sociedade brasileira do século passado, como também na deste e com certeza dos próximos séculos vindouros. Pessoalmente, considero esta capacidade de tratar de um assunto que será comum à qualquer povo, em qualquer época, um dos pontos que contam para garantir à uma obra o posto de clássica dentro de determinada arte. Se se tratar então de uma obra brasileira, tratar de preconceitos, de valores vigentes (apesar de decadentes), de abusos por parte das autoridades políticas e militares, da ignorância, das mazelas a que o povo se vê entregue pela política e pela fé, são fatores que por si só já devem garantir grandeza à uma obra.

Interessei-me por certos trechos do livro, e aqui vão alguns deles:

Como observa o Pe.Pedro-Paulo ao Pe. Gerôncio,numa conversa,“comunista é o pseudônimo que os conservadores,os conformistas e os saudosistas do fascismo inventaram para designar simplisticamente todo o sujeito que clama e luta por justiça social”. Numa outra passagem,esse mesmo padre lembrou ao delegado Inocêncio a postura “rebelde” de Cristo em face das arbitrariedades impetradas pela sociedade da época, dominada pelo império romano, e desafia o delegado torturador de Joãozinho Paz:
“-Suponhamos que Jesus Cristo tenha mesmo voltado... Delegado Pigarço, não seria prudente mandar seus investigadores procurar o Filho do Homem? Olhe que esse indivíduo é perigoso... um subversivo socializante, um terrorista com antecedentes criminosos, com ficha negríssima no DOPS de Pôncio Pilatos. Lembre-se do que ele andou dizendo e fazendo contra o grande Estabelecimento Romano... Inocêncio põe-se de pé, a cara contraída. Mas o jovem padre prossegue: -Prenda Jesus, delegado, prenda-o o quanto antes! Interrogue-o. Faça-o confessar tudo, dizer o nome de todos os seus discípulos e cúmplices... Se ele não falar,torture-o em nome da Civilização Cristão Ocidental!” (p.328).
Essa crítica é baseada na morte de uma das personagens, que foi torturada pela polícia (injustamente) com o pretexto de ser um comunista subversivo.

Outra passagem que achei interessante, essa mais emocionada, foi a conversa de duas prostitutas do livro. Erotildes (já morta) e Rosinha, sua amiga e companheira de trabalho enquanto viveu:

"Rosinha baixa a cabeça e conta: – Ontem de noite uns meninos me agarraram a força e me levaram pra um terreno baldio. Uns cinco ou seis... Primeiro me tiraram toda a roupa, até me rasgaram um vestido quase novo. Me derrubaram, se puseram em mim, não houve porcaria que não fizessem comigo. Depois foram embora dando risadas e não me deram um mísero vintém. – Conhecidos? – Alguns acho que conheço de vista. Meninos de boas famílias. – Às vezes são os piores. – Mas não sei por que fizeram isso, logo comigo! Não precisavam me agarrar a unha, me maltratar. Se dissessem que estavam sem dinheiro, eu dava de graça. Mas não. Pareciam uns animais. Em vez de virem de um a um, vinham de dois e até de três. Uns porcos! Erotildes fita na amiga os olhos gelatinosos e diz baixinho: – Pois eu te digo que estou contente por ter morrido. A gente fica livre pra sempre de todas essas tristezas e vergonhas. – Já pensei em morrer. Em tomar veneno. Mas não tive coragem... – É pecado a gente se suicidar. Vai pro inferno. – Mas o inferno não será aqui mesmo? De súbito Rosinha desata o choro. Erotildes ergue a mão como para acariciar a cabeça da amiga, mas hesita em tocá-la. – Não há de ser nada – murmura. – Não hai bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe, como dizia a minha falecida mãe. Erotildes pega o vaporizador e borrifa a própria cara de perfume. Depois diz: – Bom, já te vi. Tenho ainda quase três horas livres pela frente. Acho que vou ver a Irmã Bonifácia, aquela enfermeira que foi tão boa comigo quando eu estava no hospital. Até logo, Rosinha, Deus te ajude! Encaminha-se para a porta. – Erotildes? Tu já viste Deus? A morta se volta: – Ainda não. Decerto só vou ver Ele quando me enterrarem como cristão. Rosinha limpa tremulamente as lágrimas do rosto com as pontas dos dedos. – Vou te pedir um favor... – Qual é? – Diz pra Deus que me dê uma boa morte, já que não me deu uma boa vida."

Obra excelente, gostei muito. Espero agora anciosamente para ler as outras obras de Érico Veríssimo. Agora sim, por puro prazer de ler.