terça-feira, 11 de maio de 2010

O Mundo Assombrado Pelos demônios- A Ciência vista como uma vela no escuro

Nesta obra o astrônomo americano Carl Sagan (1934 - 1996) apresenta o método científico e o posicionamento cético como os meios mais efetivos de que dispomos para conseguir alcançar algum entendimento verdadeiro sobre o mundo que o cerca. Sagan aponta os problemas da credulidade como um mal por si só ou uma forma de fomentar males maiores e mais deliberados e põe a ciência como uma pequena vela de inspiração e conhecimento em um mundo tragado nas trevas da ignorância mas que anseia por conhecimento. Sistematicamente, Sagan, aponta as falácias mais usadas por vertentes pseudocientíficas e mostra as verdadeiras ferramentas de uma mente cética contra idéias usurpadores e falsas verdades, argumentando contra atividades que visam deliberadamente explorar pessoas que anseiam pelo conhecimento do mundo mas que são constantemente traídas por obras escritas por pseudocientistas falaciosos e meios de comunicação que distorcem o que é dito. Ao leitor é dado a chance de compreender realmente o método científico e o pensamento cético, e como estas duas ferramentas, quando bem educadas e afiadas, podem servir como filtro que barra idéias falaciosas mas permite a entrada de inspiração e idéias bem fundamentadas, formando a base para a engenhosidade e elegância da ciência, enquanto atividade, e que nos permite extrair o conhecimento tão verdadeiro, sólido e consistente quanto se pode conseguir, em um diálogo com a natureza.



PREFÁCIO
MEUS PROFESSORES
___________
Era um dia de tormenta no outono de 1939. Fora, nas ruas ao redor do edifício
de apartamentos, as folhas caíam e formavam pequenos redemoinhos, cada uma com
vida própria. Era agradável estar dentro de casa, a salvo e quente, enquanto minha
mãe preparava o jantar na cozinha ao lado. Em nosso apartamento não havia
meninos maiores que implicassem com os menores sem motivo. Precisamente, na
semana anterior me havia visto envolto em uma briga... não recordo, depois de
tantos anos, com quem; possivelmente fora com o Snoony Ágata, do terceiro piso...
e, depois de um violento golpe, meu punho atravessou o cristal da vitrine da
farmácia do Schechter.
O senhor Schechter se mostrou solícito: “Não se preocupe, tenho seguro”,
disse enquanto me lubrificava o pulso com um anti-séptico incrivelmente doloroso.
Minha mãe me levou a médico, que tinha a consulta na planta baixa de nosso bloco.
Com umas pinças extraiu um fragmento de vidro e, provido de agulha e linha,
aplicou-me dois pontos.
Dois pontos!”, tinha repetido meu pai de noite. Sabia de pontos porque era
cortador na indústria da confecção; seu trabalho consistia em cortar com uma
temível serra elétrica moldes — as costas, por exemplo, ou mangas para casacos e
trajes de senhora— de um montão de tecido. Continuando, umas intermináveis
fileiras de mulheres sentadas diante de máquinas de costurar. Agradava-lhe que me
tivesse zangado tanto para vencer minha natural timidez.
Às vezes é bom devolver o golpe. Eu não tinha pensado exercer nenhuma
violência. Simplesmente ocorreu assim. Snoony me empurrou e, no momento
seguinte, meu punho atravessou a vitrine do senhor Schechter. Eu me tinha lesado a
pulso, tinha gerado um gasto médico inesperado, tinha quebrado uma vitrine de
vidro laminado e ninguém se zangou comigo. Quanto ao Snoony, estava mais
simpático que nunca.
Tentei elucidar qual era a lição de tudo aquilo. Mas era muito mais agradável
tentar descobri-lo no calor do apartamento, olhando através da janela da sala a baía
de Nova Iorque, que me arriscar a um novo contratempo nas ruas.
Minha mãe se trocou de roupa e maquiado como estava acostumado a fazer
sempre antes que chegasse meu pai. Quase se tinha posto o sol e ficamos os dois
olhando além das águas enfurecidas.
Ali fora há gente que luta, e se matam uns aos outros - disse fazendo um
sinal vago para o Atlântico. Eu olhei com atenção.
Sei —respondi—. Os vejo.
Não, não pode vê-los —repôs ela, quase com severidade, antes de voltar
para a cozinha—. Estão muito longe.
Como podia saber ela se eu os via ou não?, perguntei-me. Forçando a vista,
tinha-me parecido discernir uma fina franja de terra no horizonte sobre a que umas
pequenas figuras se empurravam, pegavam e brigavam com espadas como em meus
gibis. Mas possivelmente tivesse razão. Possivelmente se tratava só de minha
imaginação; como os monstros de meia-noite que, em ocasiões, ainda despertavam
de um sonho profundo, com o pijama empapado de suor e o coração palpitante.
Como se pode saber quando alguém só imagina? Fiquei contemplando as
águas cinzas até que se fez de noite e me mandaram a me lavar as mãos para jantar.
Para minha delícia, meu pai tomou em braços. Podia notar o frio do mundo exterior
contra sua barba de um dia.
---ooo---
Um domingo daquele mesmo ano, meu pai me tinha explicado com paciência
o papel do zero como ponto de origem em aritmética, os nomes de som malicioso
dos números grandes e que não existe o número maior (“Sempre pode acrescentar
mais um”, dizia). De repente me entrou uma compulsão infantil de escrever em
seqüência todos os números inteiros do um aos mil. Não tínhamos nenhuma
caderneta de papel, mas meu pai me ofereceu o montão de cartões cinzas que
guardava quando lhe traziam as camisas da lavanderia. Comecei o projeto com
entusiasmo, mas me surpreendeu quão lento era. Quando me encontrava ainda nas
centenas mais baixas, minha mãe anunciou que era a hora do banho. Fiquei
desconsolado. Tinha que chegar a mil. Interveio meu pai, que toda a vida atuou de
mediador: se me submetia ao banho sem pigarrear, ele continuaria a seqüência por
mim. Eu não cabia em mim de contente. Quando saí do banho já estava perto do
novecentos, e assim pude chegar a mil só um pouco depois da hora habitual de me
deitar. A magnitude dos números grandes nunca deixou de me impressionar.
Também em 1939, meus pais levaram-me a Feira Mundial de Nova Iorque. Ali
me ofereceu uma visão de um futuro perfeito que a ciência e a alta tecnologia tinham
feito possível. Tinham enterrado uma cápsula cheia de artefatos de nossa época, para
benefício de gente de um futuro longínquo... que, assombrosamente, possivelmente
não soubesse muito da gente de 1939. O “mundo do amanhã” seria impecável,
limpo, racionalizado e, por isso eu podia ver, sem rastro de gente pobre.
Veja o som”, ordenava de modo desconcertante um pôster. E, certamente,
quando o pequeno martelo golpeava o diapasão aparecia uma bela onda sinosoidal
na tela do osciloscopio. “Escute a luz”, exortava outro pôster. E, quando o flash
iluminou a célula fotoelétrica, pude escutar um pouco parecido às interferências de
nosso rádio Motorola quando o dial não dava com a emissora. Simplesmente, o
mundo encerrava uma série de maravilhas que nunca me tinha imaginado. Como
podia converter um tom em uma imagem e a luz em ruído?
Meus pais não eram cientistas. Não sabiam quase nada de ciência. Mas, ao me
introduzir simultaneamente no ceticismo e o assombroso, ensinaram-me os dois
modos de pensamento de tão difícil convivência e que são à base do método
científico. Sua situação econômica não superava em muito o nível de pobreza. Mas
quando anunciei que queria ser astrônomo recebi um apoio incondicional, apesar de
que eles (como eu) só tinham uma idéia rudimentar do que faz um astrônomo.
Nunca me sugeriram que talvez fosse mais oportuno que me tornasse médico ou
advogado.
Eu adoraria poder dizer que na escola elementar ou secundário tivera
professores de ciências que me inspiraram. Mas, por muito que mergulho em minha
memória, não encontro nenhum. Tratava-se de uma pura memorização da tabela
periódica dos elementos, alavancas e planos inclinados, a fotossíntese das plantas
verdes e a diferença entre a antracita e o carvão betuminoso, Mas não havia
nenhuma elevada sensação de maravilha, nenhuma indicação de uma perspectiva
evolutiva, nada sobre idéias errôneas que todo mundo tinha acreditado certas em
outra época. Supunha-se que nos cursos de laboratório do instituto devíamos
encontrar uma resposta. Se não era assim, suspendiam-nos. Não nos animava a
aprofundar em nossos próprios interesses, idéias ou enganos lhes conceitue. Ao final
do livro de texto havia material que parecia interessante, mas o ano escolar sempre
terminava antes de chegar a dito final. Era possível ver maravilhosos livros de
astronomia, por exemplo, nas bibliotecas, mas não na classe. Nos ensinava a divisão
larga como se tratasse de uma série de receitas de um livro de cozinha, sem
nenhuma explicação de como esta seqüência particular de divisões curtas,
multiplicações e subtrações dava a resposta correta. No instituto nos ensinava com
reverência a extração de raízes quadradas, como se tratasse de um método entregue
tempo atrás no monte Sinai. Nosso trabalho consistia meramente em recordar o que
nos tinha ordenado: consegue a resposta correta, não importa que entenda o que faz.
Em segundo curso tive um professor de álgebra muita capacitada que me permitiu
aprender muitas matemática, mas era um valentão que desfrutava fazendo chorar às
garotas. Em todos aqueles anos de escola mantive meu interesse pela ciência lendo
livros e revistas sobre realidade e ficção científica.
A universidade foi a realização de meus sonhos: encontrei professores que não
só entendiam a ciência mas também realmente eram capazes de explicá-la. Tive a
sorte de estudar em uma das grandes instituições do saber da época: a Universidade
de Chicago. Estudava física em um departamento que girava ao redor do Enrico
Fermi; descobri a verdadeira elegância matemática com o Subrahmanyan
Chandrasekhar; tive a oportunidade de falar de química com o Harold Urey; durante
os verões fui aprendiz de biologia com o H. J. Muller na Universidade de Indiana; e
aprendi astronomia planetária com o único praticante com plena dedicação da época,
G. P. Kuiper.
No Kuiper vi pela primeira vez o chamado cálculo sobre guardanapo de papel:
te ocorre uma possível solução a um problema, agarra um guardanapo de papel,
apela a seu conhecimento de física fundamental, rabisca umas quantas equações
aproximadas, substitui-as por valores numéricos prováveis e comprova se a resposta
pode resolver de algum modo seu problema. Se não ser assim, deve procurar uma
solução diferente. É uma maneira de ir eliminando disparates como se fossem capas
de uma cebola.
Na Universidade de Chicago também tive a sorte de me encontrar com um
programa de educação geral desenhado pelo Robert M. Hutchins no que a ciência se
apresentava como parte integral da maravilhosa tapeçaria do conhecimento humano.
considerava-se impensável que um aspirante a físico não conhecesse o Platón,
Aristóteles, Bach, Shakespeare, Gibbon, Malinowski e Freud... entre outros. Em
uma classe de introdução à ciência nos apresentou de modo tão irresistível o ponto
de vista do Tolomeo de que o Sol girava ao redor da Terra que muitos estudantes
tiveram que repensar sua confiança em Copérnico. A categoria dos professores no
programa do Hutchins não tinha quase nada que ver com a investigação; ao contrário
a diferença do que é habitual nas universidades norte-americanas de hoje—,
valorava-se aos professores por sua maneira de ensinar, por sua capacidade de
transmitir informação e inspirar à futura geração.
Neste ambiente embriagador pude preencher algumas lacunas de minha
educação. Me esclareceram muitos aspectos que me tinham parecido profundamente
misteriosos, e não só na ciência. Também fui testemunha de primeira mão da alegria
que sentiam os que tinham o privilégio de descobrir algo sobre o funcionamento do
universo.
Sempre me hei sentido agradecido a meus mentores da década de 1950 e tenho
feito o possível para que todos eles conhecessem minha avaliação. Mas quando jogo
a vista atrás me parece que o mais essencial não o aprendi de meus professores de
escola, nem sequer de meus professores de universidade, mas sim de meus pais, que
não sabiam nada absolutamente de ciência, naquele ano tão longínquo de1939.


“A idéia da aplicação democrática do ceticismo é que todos deveriam ter as ferramentas essenciais para avaliar efetiva e construtivamente as alegações de quem se diz possuidor do conhecimento.” (pág. 87)
Analfabetismo científico é o que faz com que a maioria dos americanos pense que os dinossauros conviveram com os seres humanos e só desapareceram no dilúvio porque não cabiam na arca de Noé.”
Link










Sobre o livro Insônia e as alucinações (me permito chamá-las assim) de Ralph:
“É significativo que as abduções por extraterrestres ocorram principalmente no momento de dormir ou despertar, ou em compridos viagens em automóvel, quando existe o perigo bem conhecido de inundar-se em uma espécie de ensoñación hipnótica. Os terapeutas de abduzidos ficam perplexos quando seus pacientes contam que gritaram de terror enquanto seus cônjuges dormiam pesadamente a seu lado. Mas não é isso típico dos sonhos... que não se ouçam nossos gritos pedindo ajuda? Poderia ser que essas histórias tivessem algo que ver com o sonho e, como propôs Benjamim Simón para os Hill, fossem uma espécie de sonho? Um síndrome psicológico comum, embora insuficientemente conhecido, bastante parecido ao da abdução por extraterrestres se chama paralisia do sonho. Muita gente a experimenta. Ocorre neste mundo crepuscular a meio caminho entre estar totalmente acordado e totalmente dormido. Durante uns minutos, possivelmente mais, alguém fica imóvel e com uma ansiedade aguda. Sente um peso sobre o peito como se tivesse a alguém sentado ou tendido em cima. As palpitações do coração são rápidas, a respiração trabalhosa. podem-se experimentar alucinações auditivas ou visuais, de pessoas, demônios, fantasmas, animais ou pássaros. Na situação adequada, a experiência pode ter “toda a força e o impacto da realidade”, segundo Robert Baker, um psicólogo da Universidade de Kentucky. Às vezes, a alucinação tem um marcado componente sexual. Baker afirma que essas perturbações comuns do sonho são a base de muitos, se não a maioria, dos relatos de abdução de extraterrestres. (Ele e outros sugerem que há outras classes de declarações de abdução realizadas por indivíduos com tendência às fantasias, diz, ou às brincadeiras.) De modo similar, o Harvard Mental Health Letter (setembro de 1994) comenta: A paralisia do sonho pode durar vários minutos e às vezes vai acompanhada de vividas alucinações como de sonho que dão pé a histórias sobre visitas dos deuses, espíritos e criaturas extraterrestres.

  • “Parte dos motivos para as crianças terem medo do escuro pode ser o fato de que, até há bem pouco, em toda a nossa história evolutiva, elas nunca dormiam sozinhas. Em vez disso, aninhavam-se em segurança, protegidas por um adulto – em geral, a mamãe. No ocidente esclarecido, nós as enfiamos sozinhas num quarto escuro, damos boa-noite, e temos a dificuldade em compreender por que elas às vezes ficam perturbadas. Em termos de evolução da espécie, faz sentido que as crianças tenham fantasias com monstros assustadores. (...) Os que não têm medo de monstros tendem a não deixar descendentes”, afinal “num mundo povoado por leões e hienas, essas fantasias ajudavam a impedir que filhotes indefesos se aventurasses longe demais de seus guardiões” ( Pág. 117/18)

  • “Analfabetismo científico é o que faz com que a maioria dos americanos pense que os dinossauros conviveram com os seres humanos e só desapareceram no dilúvio porque não cabiam na arca de Noé.”

    “A ciência pode ter expulsado os fantasmas e as bruxas das nossas crenças, mas com igual rapidez preencheu o espaço vazio com alienígenas que desempenham as mesmas funções. Só os enfeites exteriores dos extra-terrestres são novos. Todo o medo e todos os dramas psicológicos de lidar com o problema parecem simplesmente ter encontrado mais uma vez o seu lugar, constituindo como sempre a atividade do reino das lendas, onde as coisas explodem à noite.” (Pág. 137- Thomas E. Bullard,
    Manter a mente aberta é uma virtude. Mas ela não deve ficar tão aberta a ponto do cérebro cair pra fora!”
    folclorista)
    “Quando é do conhecimento de todos que os deuses descem à Terra, nós talvez tenhamos alucinações com deuses; quando todos nós estamos familiarizados com demônios, aparecem os íncubus e súcubus; quando os duendes são aceitos por toda parte, vemos duendes; numa era de espiritualismo, encontramos espírito; e quando os antigos mitos se enfraquecem e começamos a pensar que os seres extra-terrestres são plausíveis, é para eles que tendem nossas imagens hipnagógicas.” (pág. 137)
O nosso medo é uma herança genética de nossos ancestrais primitivos, ao passo que a forma como expressamos tal medo é determinada sócio-culturalmente.
    “É um erro capital teorizar antes de obter os dados. Insensivelmente, começa-se a distorcer os fatos para adaptá-los às teorias, em vez de fazer com que as teorias se adaptem aos fatos.” (Sherlock Holmes, em A Scandal in Bohemia, de Conan Doyle/1891)
    “Se os alienígenas ao menos ficassem com todas essas pessoas que raptam, o nosso mundo seria um pouco mais sadio.”
    “Manter a mente aberta é uma virtude. Mas ela não deve ficar tão aberta a ponto do cérebro cair pra fora!”
    “Se os que 'curam pela fé' conseguem resultados semelhantes ao efeito placebo em casos de doenças psicogênicas – algumas dores nas costas e nos joelhos, dores de cabeça, gagueira, úlceras, estresse, febre de feno, asma, paralisia e cegueira histéricas, falsa gravidez(com interrupção das menstruações e inchaço abdominal [pág. 232])-, porque não deixá-,los em paz?
Simples. Toda vez que alguém procurar 'curar pela fé' uma doença orgânica (não-psicogênica) estará perdendo a oportunidade de ser realmente curado pela ciência. Por exemplo (pág. 231): Quando o baço de uma criança é partido, basta fazer uma simples cirurgia e a criança se recupera completamente. Mas se levarem a criança à alguém que 'cura pela fé', ela morre em um dia.
William Nolen, médico de Minessotta diz: “Quando os que curam [pela fé] tratam de doenças orgânicas graves, são responsáveis por incalculáveis angústias e infelicidade [...]. Os curandeiros transformam-se em assassinos.”

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Preconceito

Preconceito
Pessoas são problemas. Quando dizemos que temos um problema, na verdade estamos fazendo uma metáfora.”
Pensar que somos (ou seremos) vítimas de preconceito, em si, já é um preconceito.
Se um negro que acaba de não ser contratado para um emprego ao qual se candidatou alegar que tal fato ocorreu apenas devido ao preconceito do entrevistador – sem que procure saber dos requisitos básicos da vaga e da consistência do currículo dos outros candidatos pode estar se contradizendo e sendo, ele próprio, preconceituoso. Podemos afirmar que sofremos com algum tipo de preconceito e acreditar que de fato tal coisa ocorre sem nos lembrar que também podemos ser os agentes do preconceito. No caso acima, o candidato recusado pode pensar que o entrevistador elimina sumariamente da seleção todos os candidatos negros; mas se desconhecer que o que na verdade ocorre é a seleção de pessoal com nível de escolaridade elevado e que coincidentemente os candidatos negros não se enquadravam nas exigências, estará ele próprio sendo preconceituoso com o entrevistador.
O mesmo pode ocorrer caso um homossexual que seja impedido de permanecer em determinado ambiente ignorar que o que lhe impede de ali permanecer seja a sua vestimenta inadequada, e não sua preferência sexual – admitindo que uma mulher com roupas iguais às do homossexual também seja impedida de permanecer no mesmo local.
Devo então confessar que estive pelo menos em grande parte enganado sobre o opinião alheia acerca da minha 'distância religiosa', digamos assim. Várias foram as ocasiões em que deixei de dizer a verdade sobre minhas crenças simplesmente por achar que haveria algum tipo de rejeição de idéias.
À partir do momento em que passei a ser mais franco quanto ao que pensava e percebi não só que não houve nenhum ato (ao menos explícito) de rejeição bem como que poderia encontrar acolhimento ideológico em pessoas que partilhavam de algumas das minhas idéias, comecei a compreender que imaginar as pessoas como preconceituosas já é uma manifestação típica de preconceito; e que se esta manifestação não foi também ela gerada, é ao menos mantida pelo medo do desconhecido, do diferente – o mesmo “medo do desconhecido” que pode fazer com que a maioria exclua a minoria, pode fazer com que essas minorias apenas pensem que estão sendo excluídas – quando na verdade não estão.

A ambiguidade moral é concomitantemente o que há de melhor e de pior no ser humano.”

O Castelo - Kafka




"Alguns livros funcionam como uma chave para as salas desconhecidas do nosso próprio castelo". (Kafka)



É difícil explicar o porque de Kafka. Livros relativamente pouco consagrados, de leitura confusa e estranha não são atrativos comuns. Em detrimento disto, ou talvez mesmo por isso, senti-me compelido a entregar-me ao universo kafkiano – mais uma vez.
Além de alguns mini-contos, conheci previamente O Processo e já estava familiarizado com o estilo peculiaríssimo de Kafka. O Castelo me lembrou em muito O Processo. A sensação de confusão experimentada durante a leitura é indescritível. À princípio a lógica incomum da leitura d'O Processo me fez pensar que talvez a lógica de Kafka fosse fugir completamente à lógica – mesmo de sua própria. Porém, talvez seja escrever sempre situações surpreendentes e inusitadas.

"[estou] sempre tentando explicar algo que não pode ser explicado"
(Kafka)


Uma das definições que mais me agradam sobre Kafka é a que diz serem suas obras 'confusas como pesadelos'. Agrada-me justamente porque é exatamente a sensação que experimento durante sua leitura. A falta de conexão entre os fatos, a lógica falha e descompromissada -preguiçosa quase-, personagens que têm objetivos dúbios e se entregam avidamente à eles sem questionamento me fazem pensar sobre a tal da Vida Real.
Quantos de nós sabem dizer exatamente o que querem? Desses poucos, quantos têm motivos realmente plausíveis para se dedicar ao que acreditar? Há realmente algo em que valha a pena acreditar?
“Ler Kafka é mais do que colocar suas convicções em xeque. É por em dúvida as próprias dúvidas.”


“O senhor interpreta tudo erradamente, até o silêncio.”
(...) pois com o trabalho que faz — fumar cachimbo, ficar escutando os fregueses, depois esvaziar o cachimbo e de vez em quando ir buscar uma cerveja —, com esse tipo de trabalho não se envelhece.





Capítulo 6


Segunda conversa com a dona do albergue Diante do albergue o dono da casa o esperava. Sem ser interpelado ele não teria ousado falar, por isso K. perguntou o que ele queria. — Já tem outro lugar para ficar? — perguntou de volta o dono do albergue, olhando para o chão. — Você está fazendo a pergunta por conta de sua mulher — disse K. — Depende dela a esse ponto? — Não — disse o dono do albergue. — Não estou perguntando em nome dela. Mas ela está muito agitada e infeliz por sua causa, não pode trabalhar, fica dei­tada na cama, suspirando e se lamentando sem parar. — Devo ir falar com ela? — perguntou K. — Peço por favor que vá — disse o dono do alber­gue. — Eu já quis ir buscá-lo na casa do prefeito, fiquei escutando à porta, mas como estavam conversando não quis perturbar, além disso eu estava preocupado com minha mulher, corri de volta para cá. ela porém não me deixou entrar no quarto e assim não me restou outra coisa senão esperá-lo. — Então vamos rápido — disse K. — Vou tranqüilizá-la logo. — Espero que consiga — disse o dono do albergue. Atravessaram a cozinha clara, onde três ou quatro criadas, cada uma distante da outra, cuidando dos seus respectivos trabalhos, ficaram literalmente paralisadas à vista de K. Já da cozinha se ouviam os suspiros da dona do albergue. Ela estava deitada num cubículo sem janela separado da cozinha por um leve tabique de madeira. Só havia espaço para um grande leito de casal e um armário. A cama estava colocada de tal modo que dela se podia ver toda a cozinha e vigiar o trabalho. Da cozinha, porém, não se podia ver quase nada do quartinho, lá estava completamente escuro, só a coberta branca e vermelha cintilava um pouco. Quando se havia entrado e os olhos se habituado à escuridão é que se podiam distinguir os detalhes. — Finalmente o senhor veio — disse a dona do albergue com voz fraca. Ela estava deitada de costas, era evidente que tinha dificuldade para respirar, havia atirado a coberta de plumas para os pés da cama. Parecia muito mais jovem no leito do que vestida, mas uma touquinha de dormir de renda delicada, que tinha na cabeça, embora fosse pequena demais e oscilasse sobre os cabelos, fazia a decadência do seu rosto causar pena. — Como é que poderia ter vindo? — disse K. com brandura. — A senhora não mandou me chamar. — O senhor não deveria ter-me feito esperar tanto — disse a dona do albergue com a obstinação dos doentes. — Sente-se — disse apontando para a beira da cama. — Os outros, porém, vão embora. Além dos ajudantes haviam entrado no quarto, nesse meio tempo, também as criadas. — Devo também ir embora, Gardena? — disse o dono do albergue. K. ouvia pela primeira vez o nome da mulher. — Naturalmente — disse ela devagar. Como se estivesse entretida com outros pensamentos, acrescentou: — Por que justamente você deveria ficar? Quando todos haviam se retirado para a cozinha — dessa vez os ajudantes também seguiram, embora estivessem atrás de uma criada —, Gardena teve presença de espírito suficiente para perceber que se podia escutar da cozinha tudo o que ali se falava, pois o tabique não tinha porta. Ordenou por isso que todos deixassem também a cozinha, o que se fez imediatamente. — Por favor, senhor agrimensor — disse então Gardena —, no armário bem em frente está pendurado um xale, pegue-o para mim, quero me cobrir com ele, não suporto o cobertor de penas, respiro com tanta dificuldade. E quando K. lhe trouxe o xale ela disse: — Como o senhor vê, é um belo xale, não é verdade? Para K. parecia ser uma peça comum de lã, ele a apalpou mais uma vez por gentileza, mas não disse nada. — Sim, é um belo xale — disse Gardena cobrindo-se com ele. Ela agora estava deitada ali tranqüilamente, parecia que toda dor a tinha deixado, ocorreu-lhe até que seus cabelos haviam ficado em desalinho pelo fato de estar deitada; sentou-se por um instante na cama e arrumou um pouco o penteado em volta da pequena touca. Sua cabeleira era abundante. K. ficou impaciente e disse: — A senhora mandou perguntar se eu já tinha outro lugar para morar. — Mandei perguntar? — disse a dona do albergue. — Não, é um engano. — Seu marido acaba de me perguntar isso. — Acredito — disse a dona do albergue. — É uma rixa entre nós. Quando eu não queria o senhor aqui, ele o reteve; agora que estou feliz com o fato de o senhor estar morando aqui, ele o manda embora. Ele sempre faz coisas assim. — A senhora então — disse K. — mudou tanto sua opinião a meu respeito? Em uma, duas horas? — Não mudei de opinião — disse a dona do albergue outra vez com a voz fraca. — Estenda-me a sua mão. Assim. E agora me prometa ser completamente honesto, eu também vou fazer o mesmo com o senhor. — Está bem — disse K. — Mas quem vai começar? — Eu — disse a dona do albergue, sem deixar a impressão de que desse modo quisesse ser gentil com K., mas de que estava ansiosa por ser a primeira a falar. Tirou uma fotografia de sob o travesseiro e estendeu a K. — Olhe esta fotografia — disse num tom de súplica. Para enxergar melhor, K. deu um passo para dentro da cozinha, mas lá também não era fácil reconhecer alguma coisa na foto, pois ela estava empalidecida pelo tempo, rachada em vários lugares, amassada e cheia de manchas. — Ela não está em muito bom estado — disse K. — Infelizmente, infelizmente — disse a dona do albergue. Quando alguém a leva sempre consigo, de cá para lá, durante anos, ela fica assim. Mas se o senhor olhar direito, vai reconhecer tudo. com toda a certeza. Posso, aliás, ajudá-lo: diga-me o que está vendo, alegra-me muito ouvir falar da fotografia. E então, o que vê? — Um jovem — disse K. — Certo — disse a dona do albergue. — E o que ele está fazendo? — Creio que está deitado numa tábua, esticando o corpo e bocejando. A dona do albergue riu. — Completamente errado — disse ela. — Mas aqui está a tábua e aqui está ele deitado — insistiu K. no seu ponto de vista. — Olhe com mais atenção — disse a dona do albergue irritada. — Ele está realmente deitado? — Não — disse então K. — Ele não está deitado, está suspenso no ar e agora eu vejo que não é uma tábua, mas provavelmente um fio, e o jovem está dando um salto. — Eis aí — disse satisfeita a dona do albergue. — Ele está saltando, é assim que se exercitam os mensageiros oficiais, eu sabia que o senhor iria perceber. Vê também o rosto dele? — Do rosto só vejo muito pouco — disse K. — É evidente que está fazendo esforço, a boca está aberta, os olhos apertados e o cabelo esvoaça. — Muito bem — disse a dona do albergue com aprovação. — Mais que isso alguém que não viu pessoalmente não consegue perceber. Mas era um bonito jovem, eu só o vi fugazmente uma vez e nunca vou esquecê-lo. — Quem era ele, então? — perguntou K. — Era o mensageiro pelo qual Klamm me chamou pela primeira vez — disse a dona do albergue. K. não pôde escutar direito, sua atenção tinha sido desviada por um retinir de vidro. Descobriu logo a causa da perturbação. Os ajudantes estavam no pátio de fora, pulando na neve ora com um pé, ora com outro. Agiam como se estivessem felizes por ver K. outra vez, de felicidade apontavam um para o outro e davam contínuas batidinhas na vidraça da cozinha. A um movimento ameaçador de K. deixaram imediatamente de fazer isso, procurando empurrar um ao outro para trás, mas logo um escapulia do outro e lá estavam os dois outra vez junto à janela. K. foi correndo para dentro do tabique, onde os ajudantes não podiam vê-lo de fora, do mesmo modo que ele não podia vê-los. Mas o tinir da vidraça, leve e suplicante, continuou a persegui-lo ali também por muito tempo. — Outra vez os ajudantes — disse ele à dona do albergue para se desculpar, apontando para fora. Ela porém não prestou atenção, tirou dele a fotografia, olhou-a, alisou-a e colocou-a de novo sob o travesseiro. Seus movimentos haviam se tornado mais vagarosos, não por cansaço, mas por causa do peso da recordação. Ela quisera contar a K. e o havia esquecido por causa da história. Ficou brincando com as franjas do xale. Só um instante depois é que levantou o olhar, passou a mão sobre os olhos e disse: — Este xale também é de Klamm. A touca também. A fotografia, o xale e a touca são as três lembranças que tenho dele. Não sou tão jovem como Frieda, não sou tão ambiciosa quanto ela, nem tão sensível, ela é muito sensível, em suma, eu sei como me adaptar à vida, mas uma coisa preciso admitir: sem estas três coisas não teria suportado ficar aqui tanto tempo, com toda probabilidade não teria suportado um dia aqui. Talvez estas três recordações pareçam pouca coisa ao senhor, mas veja: Frieda, que conviveu com Klamm tanto tempo, não possui absolutamente nenhuma lembrança, eu perguntei a ela, ela é entusiasmada demais e além disso exigente demais; eu, pelo contrário, que estive com Klamm só três vezes — depois disso ele não me mandou mais chamar, não sei por quê —. trouxe comigo estas recordações, sem dúvida pressentindo que meu tempo seria breve. Certamente é preciso se preocupar com isso, espontaneamente Klamm não dá nada, mas quando a pessoa vê ali alguma coisa adequada, pode obtê-la pedindo. K. sentiu-se desconfortável diante dessas histórias, por mais que elas também dissessem respeito a ele. — Há quanto tempo foi tudo isso? — perguntou suspirando. — Há mais de vinte anos — disse a dona do albergue. — Bem mais de vinte anos. — Esse é portanto o tempo que se mantém a fidelidade a Klamm — disse K. — Mas a senhora está consciente também de que com essas confissões me causa graves preocupações quando penso no meu futuro casamento? A dona do albergue achou incorreto que K. quisesse se intrometer nos seus assuntos pessoais e olhou-o de lado, irada. — Não fique tão zangada, minha senhora — disse K. — Não estou dizendo uma palavra contra Klamm, mas por força dos acontecimentos entrei em determinadas relações com Klamm; isso nem o maior admirador de Klamm pode negar. Pois bem. Em virtude disso, a menção a Klamm sempre me força a pensar em mim, não há o que fazer. Aliás, senhora — e aqui K. agarrou sua mão hesitante —, pense em como nossa última conversa acabou mal e no fato de que desta vez queremos nos separar em paz. — O senhor tem razão — disse a dona do albergue inclinando a cabeça. — Mas por favor me poupe. Não sou mais suscetível que os outros, pelo contrário, cada qual tem pontos vulneráveis e eu só tenho este. — Infelizmente ele também é ao mesmo tempo o meu — disse K. — Mas certamente vou me dominar; explique-me no entanto, minha senhora, como devo suportar no casamento essa horrível fidelidade a Klamm, uma vez que nisso Frieda também é parecida com a senhora. — Horrível fidelidade? — repetiu com rancor a dona do albergue. — Então isso é fidelidade? Sou fiel ao meu marido, mas em relação a Klamm o que sou? Klamm tornou-me uma vez sua amante, será que posso um dia perder esse nível? E como o senhor deve suportar isso com Frieda? Ah, senhor agrimensor, quem é o senhor para ousar perguntar isso? — Senhora dona do albergue! — disse K. em tom de advertência. — Eu sei — disse a dona do albergue cedendo. — Mas nem meu marido fez essas perguntas. Não sei quem deve ser considerada mais infeliz, eu naquela época ou Frieda agora. Frieda, que deixou voluntariamente Klamm. ou eu, que ele não mandou mais chamar. Talvez seja Frieda, embora ela ainda não pareça sabê-lo em toda a sua dimensão. Mas outrora meus pensamentos eram dominados exclusivamente por minha desgraça, pois eu precisava me perguntar continuamente e no fundo ainda hoje não paro de perguntar o seguinte: por que isso aconteceu? Klamm mandou me chamar três vezes e na quarta não me chamou mais. na quarta vez nunca, nunca mais! O que então me ocupava além disso? Sobre o que então eu podia conversar com o meu marido, com quem logo depois me casei? Durante o dia não tínhamos tempo, assumimos este albergue num estado miserável e tínhamos de colocá-lo em pé. mas e à noite? Anos e anos nossas conversas noturnas só giravam sobre Klamm e as razões que o levaram a mudar de intenção. E quando meu marido adormecia durante essas conversas, eu o acordava e continuávamos falando disso. — Agora, se me permite — disse K. —. vou fazer-lhe uma pergunta muito grosseira. A dona do albergue silenciou. — A senhora portanto não me autoriza a fazê-la — disse K. — Isso também me basta. — Certamente — disse a dona do albergue. — Também isso lhe basta e sobretudo isso. O senhor interpreta tudo erradamente, até o silêncio. Mas não pode agir de outro modo. Permito que me faça a pergunta. — Se interpreto tudo errado — disse K. —, talvez faça o mesmo até com a minha pergunta, talvez ela não seja tão grosseira. Eu queria apenas saber como a senhora conheceu o seu marido e como chegaram à posse deste albergue. A dona do albergue franziu a testa mas disse com serenidade: — Essa história é simples. Meu pai era ferreiro, e Hans, meu atual marido, cavalariço de um grande proprietário rural, vinha ver meu pai com freqüência. Isso foi depois do último encontro com Klamm, eu estava muito infeliz e na verdade não devia estar, pois tudo havia evoluído corretamente e o fato de não poder mais me encontrar com Klamm tinha sido uma decisão de Klamm, portanto era correta, apenas os motivos eram obscuros, eu podia pesquisá-los, mas não devia ter ficado infeliz, mas a verdade é que estava, não conseguia trabalhar e ficava o dia todo sentada no nosso jardinzinho da frente. Foi ali que Hans me viu, sentou-se algumas vezes ao meu lado, com ele eu não me queixava; mas ele sabia do que se tratava e porque é um jovem bondoso acontecia que chorava comigo. Quando o proprietário do albergue naquela ocasião, que havia perdido a mulher e por isso obrigado a renunciar à atividade — além do mais já era um homem idoso —, passou pelo nosso jardinzinho e nos viu ali sentados, parou e, sem mais, nos ofereceu o albergue para que o arrendássemos; não queria nenhuma antecipação em dinheiro porque confiava em nós e pediu um preço bem baixo pelo arrendamento. Eu só não queria ser um peso para o meu pai; o resto me era indiferente e assim, pensando no albergue e no novo trabalho, que talvez trouxesse algum esquecimento, concedi minha mão a Hans. Essa é a história. Houve um momento de silêncio, depois K. disse: — O modo de agir do dono do albergue naquela época foi um belo gesto, apesar de imprudente, ou ele tinha motivos particulares para confiar nos dois? — Ele conhecia Hans — disse a dona do albergue. — Era tio de Hans. — Com certeza então a família de Hans tinha o maior interesse na união dele com a senhora — disse K. — Talvez — disse a dona do albergue. — Não sei, não me preocupei com isso. — Mas deve ter sido assim, sem dúvida — disse K. — Se a família estava disposta a fazer esse sacrifício e entregar o albergue nas suas mãos. simplesmente sem garantia. — Não foi imprudente, como se viu mais tarde — disse a dona do albergue. — Lancei-me ao trabalho, eu era forte, filha do ferreiro, não precisava de criada ou criado, estava em toda parte, na sala do albergue, na cozinha, no estábulo, no pátio, cozinhava tão bem que tirava clientes até da Hospedaria dos Senhores; o senhor não estava no albergue na hora do almoço, não conhece nossos clientes do almoço, antes eram mais numerosos ainda, depois é que muitos foram se dispersando. E o resultado foi que não só pudemos pagar em dia o arrendamento, mas também compramos tudo depois de alguns anos e o albergue hoje está quase isento de dívidas. O outro resultado certamente foi que me destruí com isso, fiquei doente do coração e agora sou uma mulher velha. Talvez o senhor creia que sou muito mais velha do que Hans, mas na realidade ele é apenas dois ou três anos mais novo e com certeza nunca vai envelhecer, pois com o trabalho que faz — fumar cachimbo, ficar escutando os fregueses, depois esvaziar o cachimbo e de vez em quando ir buscar uma cerveja —, com esse tipo de trabalho não se envelhece. — O que a senhora fez é admirável — disse K. — Quanto a isso não há dúvida, mas estávamos falando do tempo anterior ao seu casamento e naquela época deve ter sido estranho que a família de Hans pressionasse no sentido do casamento, com sacrifício financeiro ou pelo menos assumindo um risco tão grande, como era o arrendamento do albergue, não tendo no caso nenhuma outra esperança a não ser a força de trabalho da senhora — que ainda não se conhecia — e a força de trabalho de Hans, cuja inexistência já se deveria conhecer. — Muito bem — disse a dona do albergue cansada. — Sei aonde quer chegar e também o quanto se engana. Em tudo isso não havia o menor rastro de Klamm. Por que ele deveria ter se preocupado comigo, ou melhor: como poderia ter de alguma forma se preocupado? Ele já não sabia mais nada de mim. O fato de não ter mais mandado me chamar era um sinal de que havia me esquecido. Quem ele não manda mais chamar é quem ele esquece por completo. Não quis falar sobre isso na frente de Frieda. Mas não é apenas esquecimento, é mais do que isso. Aquele de quem se esqueceu pode-se conhecer de novo. Com Klamm isso não é possível. Quem ele não manda mais chamar não só foi esquecido completamente em relação ao passado, mas também para o futuro todo — literalmente. Quando me esforço muito posso penetrar nos seus pensamentos, senhor agrimensor, pensamentos que aqui não fazem sentido, mas que talvez sejam válidos no país estrangeiro do qual o senhor vem. Possivelmente o senhor se atreva à loucura de pensar que Klamm me deu Hans como marido para que eu não encontrasse muito obstáculo para ir até ele caso no futuro me mandasse chamar. Bem, mais longe que isso nem a loucura pode ir. Mas que marido poderia me impedir de correr para Klamm se Klamm me fizesse um sinal? Absurdo, completo absurdo, quando alguém brinca com um absurdo assim, confunde a si mesmo. — Não — disse K. — Não vamos nos confundir, eu ainda não tinha ido tão longe nos meus pensamentos como a senhora supõe, embora, para dizer a verdade, estivesse a caminho. No momento, porém, me surpreendia apenas com o fato de que os parentes esperassem tanto do casamento e de que essas esperanças efetivamente se realizassem, se bem que à custa do seu coração e da sua saúde. A idéia de uma ligação entre esses fatos e Klamm certamente se impunha aos meus pensamentos, mas não — ou ainda não — na forma grosseira como a senhora apresentou, evidentemente com o único propósito de me descompor mais uma vez porque isso lhe dá prazer. Tenha então esse prazer! Mas o que eu estava pensando era o seguinte: primeiro de tudo, Klamm é claramente a causa do casamento. Sem Klamm a senhora não teria sido infeliz, não teria ficado sentada sem fazer nada no jardinzinho da frente, sem Klamm não teria visto Hans ali, sem a tristeza da senhora o tímido Hans não teria nunca ousado lhe falar, sem Klamm nunca teria se encontrado com Hans nas lágrimas, sem Klamm o velho e bom tio dono do albergue nunca teria visto Hans e a senhora tranqüilamente sentados juntos ali, sem Klamm a senhora não teria ficado indiferente diante da vida e portanto não teria se casado com Hans. Bem, eu devia achar que em tudo isso já havia Klamm suficiente, na minha opinião. Mas ainda continua. Se a senhora não tivesse procurado se esquecer, certamente não teria trabalhado com tamanha falta de consideração por si mesma, nem melhorado tanto o albergue. Aqui também entra Klamm. Mas, à parte isso, Klamm também é a causa da sua doença, pois o coração da senhora já estava esgotado antes do casamento em virtude da paixão infeliz. Resta só perguntar o que atraía tanto os parentes de Hans nesse casamento. A senhora mesmo mencionou uma vez que ser amante de Klamm significa uma elevação de nível que não se perde; logo, pode ser que isso os tenha atraído. Além do que, acredito, a esperança de que a boa estrela que a conduziu a Klamm — supondo que era uma boa estrela, mas é a senhora que o afirma — lhe pertencesse, ou seja, tivesse de permanecer com a senhora sem abandoná-la tão rápida e repentinamente como Klamm o fez. — O senhor está pensando tudo isso a sério? — perguntou a dona do albergue. — A sério — disse K. depressa. — Julgo apenas que os parentes de Hans não estavam nem inteiramente certos nem inteiramente errados nas suas esperanças e creio também reconhecer o erro que a senhora cometeu. Exteriormente tudo parece bem-sucedido, Hans está em boas mãos, tem uma excelente mulher, é respeitado, o albergue está isento de dívidas. Mas na verdade nem tudo deu certo; com uma mulher simples de quem tivesse sido o primeiro grande amor, ele teria sido sem dúvida muito mais feliz; se, como a senhora o censura, ele às vezes parece perdido no albergue, isso acontece porque ele se sente realmente perdido — sem ser infeliz com isso, com certeza, até onde eu já o conheço —, mas é igualmente certo que esse jovem bonito e compreensivo teria sido mais feliz com outra mulher, com o que quero dizer ao mesmo tempo: mais independente, mais ativo, mais viril. E sem dúvida também a senhora não é feliz e, como me dizia, sem as três lembranças não queria continuar vivendo — além do que é doente do coração. Os parentes, portanto, estavam errados alimentando aquelas esperanças? Não acredito. A bênção estava sobre a senhora, mas não souberam fazê-la baixar. — O que então deixaram de fazer? — perguntou a dona do albergue. Ela agora estava estendida de costas e olhava para o teto. — De perguntar a Klamm — disse K. — Estaríamos então de volta ao senhor — disse a dona do albergue. — Ou à senhora — disse K. — Nossos assuntos tocam um no outro. — O que o senhor está então querendo de Klamm? — disse a dona do albergue. Ela havia se erguido para ficar sentada na cama. sacudido os travesseiros para poder se recostar e olhava K. bem nos olhos: — Eu contei meu caso francamente ao senhor para que pudesse aprender alguma coisa com ele. Diga-me com igual franqueza o que então o senhor quer perguntar a Klamm. Foi só com esforço que convenci Frieda a subir ao seu quarto e ficar lá, eu temia que na presença dela o senhor não iria falar com franqueza suficiente. — Não tenho nada a esconder — disse K. — Mas primeiro quero chamar sua atenção para uma coisa. Klamm esquece logo, disse a senhora. Ora, isso me parece, em primeiro lugar, muito improvável, mas em segundo não pode ser provado; é claro que não passa de uma lenda, elucubrada pela mente daquelas meninas que estavam justamente nas graças de Klamm. Admiro-me de que acredite numa invenção tão rasa. — Não é uma lenda — disse a dona do albergue. — Pelo contrário, é fruto da experiência comum. — Ou seja, pode ser refutada por uma nova experiência — disse K. — Existe então mais uma diferença entre o seu caso e o de Frieda. De certo modo não sucedeu que Klamm não tivesse mais chamado Frieda, ao contrário ele a chamou, mas ela não atendeu. É até possível que ele ainda a espere. A dona do albergue silenciou e deixou apenas seu olhar ficar observando K. de alto a baixo. Depois disse: — Quero ouvir calmamente tudo o que o senhor tem a dizer. É melhor falar abertamente do que me poupar. Só tenho um pedido. Não use o nome de Klamm. Chame-o de "ele" ou qualquer outra coisa, mas não pelo nome. — Com prazer — disse K. — Mas o que eu quero dele é difícil de dizer. Primeiro quero vê-lo de perto, depois ouvir sua voz, em seguida quero saber dele o que pensa do nosso casamento; o que talvez eu ainda queira pedir depende do curso da entrevista. Muita coisa pode vir à fala, mas o principal, para mim, é ficar diante dele. Na verdade até agora não conversei diretamente com nenhum funcionário real. Isso parece ser mais difícil de alcançar do que eu acreditava. Agora no entanto tenho o dever de falar com ele como um particular e na minha opinião isso é muito mais fácil de conseguir; como funcionário só posso falar em seu escritório, talvez inacessível, no castelo ou, o que já é duvidoso, na Hospedaria dos Senhores; mas como particular posso falar em qualquer parte, em casa, na rua, onde consiga encontrá-lo. Que nesse caso então eu também tenha diante de mim o funcionário é algo que vou aceitar com prazer, mas não é o meu objetivo principal. — Bem — disse a dona do albergue afundando o rosto no travesseiro como se dissesse alguma coisa indecente. — Se por meio das minhas ligações eu conseguir dar seguimento ao seu pedido de entrevista, o senhor me promete, até a resposta descer, não empreender nada por conta própria? — Isso eu não posso prometer — disse K. — Por mais que queira atender ao seu pedido ou ao seu capricho. O fato é que a coisa urge, principalmente depois do resultado desfavorável da minha conversa com o prefeito. — Essa objeção não é válida — disse a dona do albergue. — O prefeito é uma pessoa completamente sem importância. O senhor não notou isso? Ele não poderia ficar um dia no seu posto se não fosse sua mulher, que dirige tudo. — Mizzi? — disse K. A dona do albergue fez um aceno com a cabeça. — Ela estava lá — disse K. — Ela manifestou sua opinião? — disse a dona do albergue. — Não — disse K. — Também não tive a impressão de que ela pudesse fazer isso. — Ah, sim — disse a dona do albergue. — O senhor tem uma visão errada de tudo, aqui. Seja como for, o que o prefeito dispôs sobre o senhor não tem nenhuma importância e com a mulher eventualmente falo eu. E se ainda por cima lhe prometer que a resposta de Klamm vai chegar no máximo em uma semana, o senhor certamente não tem mais nenhum motivo para não ceder. — Nada disso decide — disse K. — Minha resolução é firme e eu tentaria executá-la mesmo que viesse uma resposta negativa. Mas, se tenho desde já essa intenção, não posso mandar pedir antes uma entrevista. O que sem o pedido talvez fosse uma tentativa temerária, embora de boa-fé, seria aberta rebeldia depois de uma resposta negativa. Sem dúvida isso seria muito pior. — Pior? — disse a dona do albergue. — Em qualquer caso é rebeldia. E agora faça como quiser. Passe-me o vestido. Sem levar K. em conta ela pôs o vestido e foi às pressas para a cozinha. Fazia muito tempo que do salão chegavam sinais de impaciência. Tinham batido na janelinha. Os ajudantes haviam-na aberto uma vez e gritado para dentro que estavam com fome. Depois outros rostos tinham aparecido ali. Ouviu-se até um canto baixo mas de várias vozes. Com certeza a conversa de K. com a dona do albergue havia atrasado muito o preparo do almoço; ele ainda não havia ficado pronto, mas os fregueses estavam reunidos, de qualquer modo ninguém tinha ousado entrar na cozinha desrespeitando a proibição da dona do albergue. Mas assim que os que observavam da janelinha anunciaram que a dona do albergue já estava vindo, as criadas correram logo para a cozinha e quando K. entrou no salão do albergue as pessoas, espantosamente numerosas, mais de vinte, homens e mulheres, vestidos à moda da província, mas não como camponeses, saíram em massa da janelinha, onde tinham estado reunidos, em direção às mesas, para garantir seus lugares. Só numa pequena mesa situada num canto já estava sentado um casal com algumas crianças; o marido, um homem simpático de olhos azuis, cabelo e barba grisalhos e desalinhados, estava em pé inclinado sobre as crianças e marcava com uma faca o compasso do seu canto, que ele se empenhava sem parar em manter baixo. Talvez ele quisesse fazer esquecer a fome com o canto. A dona do albergue desculpou-se diante das pessoas com algumas palavras ditas com indiferença, ninguém lhe fez censuras. Ela procurou com o olhar o dono do albergue, que no entanto, perante a dificuldade da situação, já havia escapulido fazia muito tempo. Depois foi devagar para a cozinha; a K, que se apressou a ir para o quarto de Frieda, ela não concedeu mais nenhum olhar. Kafka deixa muitíssimo evidente, em especial nesse capítulo 6, a incrível capacidade humana de se submeter à outros que seriam teoricamente superiores. Ídolos da televisão, do cinema ou da música são tidos como verdadeiros deuses para pessoas que nem sequer os conhecem de verdade. O ser humano (em sua maioria) tem essa capacidade (ou talvez até mesmo essa necessidade) estranha de tomas figuras para idolatrar, mesmo que tais figuras sejam de barro ou, no caso de estarem vivos, mesmo que tenham um caráter sujo como o barro.




“O ser humano idolatra desde figuras de barro à caráteres tão sujos como o próprio barro.” “Ilusões são mais frequentes que mudanças” “Se o mundo nunca me foi explicado, por quê eu deveria me dar ao trabalho de me explicar para o mundo?” (Pablo V.) “Ele é agrimensor, talvez isso seja algo; ele portanto aprendeu alguma coisa, mas quando não se consegue fazer nada com o que se sabe, não se é nada outra vez.”


“É claro que a abundância de referências atua como linha auxiliar no entendimento de um livro complexo, mas nem de longe dá conta dessa complexidade. É oportuno assinalar, não obstante, que um kafkiano pouco conhecido sugere um paralelo de grande interesse ao lembrar, a propósito de O castelo, uma passagem de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer (parágrafo 17 do segundo livro), segundo a qual um homem dominado por uma vontade inesgotável circula em volta de um castelo na busca inútil de uma entrada. Reduzido ao osso e abstraído com violência o rico tecido de peripécias, o tema do romance de Kafka é exatamente esse; mas é conhecido que o escritor praguense não partilhava do pessimismo de Schopenhauer, embora — conforme consta em pesquisas de filigrana — ele tenha se valido de certas imagens e até de uma ou outra terminologia do filósofo alemão.” Posfácio. O Fausto do Século 20. Modesto Carone À memória de Marilene Carone, tradutora de Freud
[Max] Brod afirma, também, que Kafka teria declarado pessoalmente a ele que o romance chegaria a um desenlace no qual K., já no leito de morte, cercado pelos habitantes da aldeia, receberia uma mensagem no sentido de que as autoridades do castelo permitiriam que ele permanecesse na aldeia, embora sem o direito de reivindicar tal permanência.