segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O Lobo da Estepe


“— Irmão Harry, convido-o para uma pequena diversão. Somente para loucos. A
entrada custa a razão. Está disposto?”
(Pág. 92 – O Lobo Da Estepe )


Estava assistindo à um programa no site Showlivre.com de uma banda contemporânea que acompanho desde o princípio da carreira, O Teatro Mágico, quando numa determinada altura o líder da banda, Fernando Anitelli, comentou sobre sua inspiração para iniciar o projeto músical. Entre todo o relato de sua história pessoal com a música, Anitelli citou um livro que havia lhe sugerido o nome para o seu projeto: O Lobo Da Estepe, de Hermann Hesse.
Contou aos internautas que acompanhavam à entrevista que a personagem principal do livro havia ficado profundamente interessada quando, ao passar por uma rua que parecia não poder ser mais simples, viu um cartaz colorido e atrativo convidando o público à ingressar no Teatro Mágico, entrada para raros.
Tanto o nome da banda quanto o do primeiro álbum (Entrada Para Raros) foram inspirados na obra de Hesse. Anitelli declarou, porém, que as inspirações limitavam-se aos nomes e, mais à fundo, talvez até um pouco na ideologia de O Lobo Da Estepe; não sendo portanto o Teatro Mágico uma tentativa de releitura musical da obra de Hesse.
Após descobrir a relação do autor com uma banda de que gosto muito, meu interesse por sua obra foi imediato.
Senhoras e senhores, respeitável público pagão, bem vindos ao Teatro Mágico de Hesse!



Sinopse: As palavras iniciais escritas antes da narrativa se iniciar são: "só para loucos". Um aviso de Hermann Hesse para um livro perigoso, que eleva o nível de desagregação do ser ao máximo, e o sofrimento e a dúvida até onde o homem pode agüentar. A vítima e personagem é Harry Haller, um sujeito culto, de aparência não desprezível, mas que não se encaixa na sociedade. Preferiu traçar seu caminho sozinho, perambulando por esquinas de noite, ou observando o calor do cabarés. Em seus delírios reais Haller esbarra com outras pessoas estranhas, que o chamam por trás de luzes nostálgicas e da fumaça de ópio e o levam à descoberta de um novo mundo. A trama fez com que muitos considerassem esse o melhor livro do autor e um passo indispensável para ele ganhar o prêmio Nobel de Literatura com o romance "O Jogo das Contas de Vidro".


Filosoficamente, tanto quanto literariamente, O Lobo da Estepe é também uma obra-prima.

Naturalmente haverá outra guerra; não é preciso ler nos jornais para saber disto. É certo, embora isso nos entristeça, que o homem, apesar de tudo e de todos, apesar do que possa fazer, o homem tem inevitavelmente de morrer. A luta contra a morte, meu caro Harry, é sempre uma coisa bela, nobre, prodigiosa e digna, da mesma forma que a luta contra a guerra. Mas há de ser sempre uma quixotada sem esperanças.


  • Talvez seja verdade — exclamei enérgico — mas com verdades semelhantes a esta de que temos todos de morrer e que, por conseguinte, tudo é igual, é que convertemos a vida em algo monótono e estúpido. Desta forma teremos de renunciar a tudo, ao espírito, às aspirações; teremos de destruir a Humanidade, teremos de permitir que reine o egoísmo e o dinheiro e esperar a próxima guerra com um copo de cerveja à mão.”

“— Mas podem vir com polícias e soldados e matar-nos. —Já não existe mais polícia nem
nada que se assemelhe a isso. Podemos fazer das duas uma: ou ficar aqui tranqüilamente e disparar contra todos os carros que passem pela estrada ou tomar um desses carros e deitar a correr por aí para que os outros nos metralhem. Tanto faz tomar um partido quanto outro. Acho preferível ficarmos aqui.
Lá embaixo surgiu um outro automóvel, cuja buzina soava estridentemente. De pronto
liquidamos com ele e lá ficou com as rodas viradas para cima.
É curioso — disse eu — que um disparo possa causar tamanha diversão. Eu antes era inimigo da guerra!
Gustav sorriu:
Sim, há homens em demasia na terra. Antes a gente não se dava conta disso. Mas agora,
quando as pessoas já não se contentam em respirar e querem também ter um automóvel, a
coisa se nota mais. Naturalmente, o que estamos fazendo não é racional; trata-se de uma
infantilidade, como também a guerra é uma infantilidade em escala monumental. A Humanidade aprenderá mais tarde a regular a população por meios racionais. Enquanto isso, é necessário reagirmos contra esta situação insuportável de maneira bastante irracional; mas no fundo, fa2emos o que é
necessário: reduzimos.
— Sim — disse eu — isto fazemos; possivelmente há de ser uma loucura, mas talvez seja
também bom e necessário. As coisas não vão bem quando a Humanidade fatiga
excessivamente sua inteligência e procura ordenar com o auxílio da razão as coisas
inacessíveis à razão. Então surgem ideais, tais como os dos americanos ou dos bolchevistas;
ambos são extraordinariamente racionais, mas desejando ingenuamente simplificar a vida,
acabam por violentá-la de maneira terrível. A igualdade do homem, um ato ideal das épocas
pretéritas, está a ponto de se tornar um clichê. Talvez nós, os loucos, consigamos enobrecê-lo um pouco.


Um dos pensamentos que mais me chamou a atenção no livro:

"A maioria dos homens não quer nadar antes que o possa fazer.'' Não
é engraçado? Naturalmente, não querem nadar. Nasceram para andar na terra e não para a
água. E, naturalmente, não querem pensar: foram criados para viver e não para pensar! Isto
mesmo! E quem pensa, quem faz do pensamento sua principal atividade, pode chegar muito
longe com isso, mas, sem dúvida estará confundindo a terra com a água e um dia morrerá
afogado.


Nota do Autor
(1961)
Os escritos poéticos podem ser compreendidos e incompreendidos de muitas maneiras. Na
maior parte dos casos o autor não constitui a autoridade mais indicada para decidir até que
ponto o leitor compreende e onde começa a incompreensão. Não são poucos aqueles a cujos
leitores sua obra parecia muito mais clara do que a eles próprios. Além do mais, as
incompreensões até que podem ser frutíferas sob certas circunstâncias.
Contudo, parece-me que de todas as minhas obras, o Lobo da Estepe é a que vem sendo mais
freqüente e violentamente incompreendida, e o curioso é que, em geral, a incompreensão
parte mais dos leitores entusiastas e satisfeitos com o livro do que dos leitores que o
rejeitaram. Em parte, mas só em parte, isto pode ocorrer com tal freqüência em razão de este
livro, escrito quando eu tinha cinqüenta anos e tratando, como trata, de problemas peculiares a essa idade, cair não raro em mãos de leitores
muito jovens.
Mas, entre leitores da minha própria idade, também tenho encontrado com freqüência
alguns que — embora bem impressionados com o livro — só percebem
estranhamente apenas uma parte do que pretendi. Tais leitores, ao que me parece,
reconheceram-se no Lobo da Estepe, identificaram-se com ele, sofreram suas dores e
sonharam os seus sonhos; mas não deram o devido valor ao fato de que este livro fala
e trata também de outras coisas, além de Harry Haller e de seus problemas, que fala a
propósito de um outro mundo mais elevado e indestrutível, muito acima daquele em
que transcorre a problemática vida de meu personagem. O Tratado do Lobo da Estepe
e outros trechos do livro que versam questões do espírito abordam assuntos de arte e
mencionam os "imortais", opõem-se ao mundo sofredor do Lobo da Estepe com a
afirmativa de um mundo de fé, sereno, multipersonalístico e atemporal. O livro trata,
sem dúvida alguma, de sofrimentos e necessidades, mas mesmo assim não é o livro de um homem em desespero, mas o de um homem que crê.
É claro que não posso nem pretendo dizer aos meus leitores como devem entender a minha história. Que cada um nele encontre aquilo que lhe possa ferir a corda íntima e o que lhe seja de alguma utilidade! Mas eu me sentiria contente se alguns desses leitores pudessem perceber que a história do Lobo da Estepe, embora retrate enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas, ao contrário, à redenção.”

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Revolução dos Bichos


De uns tempos pra cá, me descuidei deste pequeno espaço mais do que pessoal, íntimo. Assim ando com todo o resto. E sinceramente, não será prejudicial ao intuito do Blog -me permitir recordar, mais tarde, de alguns dos livros que li- o fato de estar sendo composto por textos não escritos por mim. No mais, paciência.




Sentindo chegar sua hora, Major, um velho porco, reúne os animais da fazenda para compartilhar de um sonho: serem governados por eles próprios, os animais, sem a submissão e exploração do homem. Ensinou-lhes uma antiga canção, Animais da Inglaterra (Beasts of England), que resume a filosofia do Animalismo, exaltando a igualdade entre eles e os tempos prósperos que estavam por vir, deixando os demais animais extasiados com as possibilidades.

O velho Major faleceu três dias depois, tomando a frente os astutos e jovens porcos Bola-de-Neve e Napoleão, que passaram a se reunir clandestinamente a fim de traçar as estratégias da revolução. Certo dia Sr. Jones, então proprietário da fazenda, se descuidou na alimentação dos animais, fato este que se tornou o estopim para aqueles bichos. Deu-se a Revolução.

Sob o comando dos inteligentes e letrados porcos, os animais passaram a chamar a Quinta Manor de Quinta dos Animais pt / Granja ou Fazenda dos Bichos br, e aprenderam os Sete Mandamentos, que, a princípio, ganhava a seguinte forma:

"1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupas.
4. Nenhum animal dormirá em cama.
5. Nenhum animal beberá álcool.
6. Nenhum animal matará outro animal.
7. Todos os animais são iguais."


Para os animais menos inteligentes, os porcos resumiram os mandamentos apenas na máxima "Quatro pernas bom, duas pernas ruim" que passou a ser repetido constantemente pelas ovelhas. Após a primeira invasão dos humanos, na tentativa frustrada de retomar a fazenda, Bola-de-Neve luta bravamente, dedica todo o seu tempo ao aprimoramento da fazenda e da qualidade de vida de todos, mas, mesmo assim, Napoleão o expulsa do território, alegando sérias acusações contra o antigo companheiro. Acusações estas que se prolongam por toda história, mesmo após o desaparecimento de Bola-de-Neve, na tentativa de encobrir algo ou mesmo ter alguma explicação para os animais para catástrofes, criando-se um mito em torno do porco que, a partir daí, é considerado um traidor.

Napoleão se apossa da idéia de Bola-de-Neve de construir um moinho de vento para a geração de energia, mesmo havendo feito duras críticas à imaginação do companheiro, e inicia a sua construção. Algum tempo depois, os porcos começam a negociar com os agricultores da região, recusando a existência de uma resolução de não contactar com os humanos, apontando essa idéia como mais uma invenção de Bola-de-Neve. Os porcos passam ainda a viver na antiga casa de Sr. Jones e começam a modificar os mandamentos que estavam na porta do celeiro:

"4. Nenhum animal dormirá em cama com lençóis.
5. Nenhum animal beberá álcool em excesso.
6. Nenhum animal matará outro animal sem motivo.
7. Todos os animais são iguais mas alguns são mais que outros."


O hino da Revolução é banido, já que a sociedade ideal descrita, segundo Napoleão já teria sido atingida sob o seu comando. Napoleão é declarado líder por unanimidade. As condições de trabalho se degradam, os animais recebem novo ataque humano e já não se lembram se na época em que estavam submissos ao Sr. Jones era mesmo pior, mas lembravam-se da liberdade proclamada, e eram sempre lembrados por sábios discursos suínos, principalmente os proferidos por Garganta, um porco com especial capacidade persuasiva. Napoleão, os outros porcos e os agricultores da vizinhança celebram, em conjunto, a produtividade da Quinta[3] dos Animais. Os outros animais trabalham arduamente em troca de míseras rações. O que se assiste é um arremedo grotesco da sociedade humana.

O slogan das ovelhas fora modificado ligeiramente, “Quatro pernas bom, duas pernas melhor!”, pois agora os porcos andavam sobre as duas patas traseiras. No final, os animais, ao olhar para dentro de casa, já não conseguem distinguir os porcos dos homens.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O Último Conhaque


“... A violência do mundo patriarcal aproxima muito Herculano Lopes de um outro mineiro, Autran Dourado, embora este possua uma exuberância narrativa muito distante do estilo cru e árido do autor de O Último Conhaque. Quer dizer, os problemas são similares, as histórias se passam num tipo parecido de cidade, mas a técnica é bem diferente. Ambos são mundos ficcionais da memória, do olhar lançado para trás, porém o universo de Dourado se tinge de mitos e profundidade, é mundo de grandeza e decadência, o de Herculano Lopes é inundado de horror, de pobreza onde, imprensadas entre o rural e o urbano, as pessoas são confrontadas com uma coisa simples e clara: a injustiça. A eficácia de sua denúncia é que, mesmo sabendo de tudo isso, o leitor ainda assim fica contristado e envolvido.” ( Alfredo Monte, A Tribuna, Santos, SP)



Naquele início de madrugada do sexto dia de sua chegada a Santa Marta para o enterro de sua mãe, Maria Lucas, fulminada por um ataque cardíaco, e quase trinta anos depois da morte de seu pai, o médico Juko Lacena, assassinado com três tiros nas costas, seu filho, já com quase quarenta anos, estava ali na antiga casa, na sala, recostado à poltrona que fora de sua mãe e onde ela, depois do crime- e até mesmo antes dele-, passara a maior parte da vida. Já havia tomado muito conhaque, o estômago doía, e ele sentia uma incrível vontade de chorar. Tudo isso porque, contrariando a vontade dela, várias vezes repetida, ele voltara àquela cidade e, sobretudo, àquela casa onde muito de sua vida, da parte mais entranhada de sua vida, estava guardado naquelas gavetas, que-e isso o apavorava- ele não conseguia abrir, como se uma força misteriosa o impedisse. E como lutar contra ela? Ele não sabia. E, já bêbado e muito só, aquele homem, entre tantas outras lembranças, começou a recordar-se do dia em que a mãe saíra para faze compras e, ao voltar, os encontrara, a ele e a Rita (sua irmã), no quarto cuja entrada lhes era proibida: o do casal. E os dois estavam com o guarda-roupa aberto e já vestidos: ele, com o terno azul de seu pai, o cachimbo à boca, e Rita, sorrindo olhava-se no espelho já de batom passado, várias cores de sombra nos olhos, e começava a pintas as unhas. A princípio, apara alívio de ambos, a mãe nada disse, e chagou até a esboçar um sorriso. Mas, em seguida, após ir ao terreiro e de lá voltar com uma vara, deu-lhes uma surra, até que, cansados de tanto chorar, ele e Rita apenas soluçavam. E, como se não bastasse, ela ainda os trancou no quarto dos fundos, muito escuro e onde, nas noites de sexta-feira, aparecia a alma de um ex-promotor de justiça, o famoso Bode Velho que, antes de voltar para sua terra, Montes Claros, morara naquela casa, onde, em várias ocasiões – para o espanto de todos em Santa Marta -, se transformara em lobisomem: “a própria imagem do cão”, segundo diziam. E o homem, enchendo mais uma vez o copo, lembou-se também da vez em que ele, andando distraído pelo terreiro, encontrou a cobra de duas cabeças vista na tarde do dia anterior pela empregada que, em vez de matá-la, preferira lhe jogar água fervente, “pra sofrer mais”, ela disse. E a cobra, já quase morta pelas queimaduras, estava sendo picada por centenas de formigas, que numa fúria incontrolável, acabaram por liquidá-la. E aquela cena ele, mesmo depois de tantos anos, vivenciava com tanta clareza quanto se tivesse acontecido há poucas horas e as formigas ainda continuassem ali, acabando de consumar a tragédia. E, apertando os olhos e querendo pensar em outras coisas, o homem tomou mais um conhaque – um Macieira, finalmente!-, a dor no estômago continuou, e ele falou a si próprio e repetiu em voz alta que, tão logo amanhecesse -tivesse ou não aberto as gavetas-, iria procurar sua prima, entregar-lhe as chaves da casa e partir daquele lugar, pois não mais o tolerava. Então, já completamente tonto, adormeceu, enquanto lá fora, nas ruas, o silêncio ficou tão grande que nem Maria Teresa (sua prima), acostumada a ele e também sozinha, conseguia suportar. E ela, deixando-se levar pelo desassossego, puxou o cobertor sobre o corpo. E sentiu medo. Muito medo de ouvir outra vez o piar da coruja que, quase todas as noites, assustando-a cada vez mais, pousava numa árvore próxima à janela de seu quarto. Isso enquanto suas mãos, quentes e ásperas -e fora de controle-, começaram a acariciar os seios. E todo seu corpo tremia, e o ventre, quase molhado, começava a aceitar, muito timidamente, o contato dos próprios dedos, e ela, com medo daqueles instantes tornarem-se eternos, sentiu que, pela primeira vez, alguém poderia ser dono do seu coração.


Carlos Herculano Lopes, O Último Conhaque capítulo 28)

domingo, 22 de novembro de 2009

Guerra é paz, Liberdade é escravidão, Ignorância é força.


O livro faz parte do que se poderia chamar a “Trindade distópica” da literatura inglesa composta por 1984 (George Orwell), Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley) e Laranja Mecânica (Burgess). Os três livros mostram a seus leitores um futuro catastrófico e, em muitas partes, plausível. Distopia é um processo de construção literária oposto à utopia: constrói-se um mundo no qual não se quer viver, um mundo que habita seus pesadelos e no qual você não quer acordar.

Após assistir ao filme Laranja Mecânica e ter lido o comentário acima, me interessei também pelas outras duas obras distópicas da literatura inglesa. Num post anterior falei sobre o Admirável Mundo Novo de Huxley e agora é a vez de falar sobre 1984 de George Orwell.



No livro conta-se a história de Winston, um apagado funcionário do Ministério da Verdade da Oceania e de como ele parte da indiferença perante a sociedade totalitária em que vive, passa à revolta, levado pelo amor por Júlia e incentivado por O'Brien, um membro do Partido Interno com quem Winston simpatiza; e de como acaba por descobrir que a própria revolta é fomentada pelo Partido no poder. E também de como, no Quarto 101, o chamado "pior lugar do mundo", todo homem tem os seus limites.

A trama se passa na Pista No. 1, o nome da Inglaterra sob o regime totalitário do Grande Irmão (no original, Big Brother) e sua ideologia IngSoc (socialismo inglês), e conta a história de Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, um órgão que cuida da informação pública do governo. Diariamente, os cidadãos devem parar o trabalho por dois minutos e se dedicar a atacar histericamente o traidor foragido Emmanuel Goldstein e, em seguida, adorar a figura do Grande Irmão. Smith não tem muita memória de sua infância ou dos anos anteriores à mudança política e, ironicamente, trabalha no serviço de rectificação de notícias já publicadas, publicando versões retroactivas de edições históricas do jornal The Times. Estranhamente, ele começa a interessar-se pela sua colega de trabalho Julia, num ambiente em que sexo, senão para procriação, é considerado crime. Ao mesmo tempo, Winston é cooptado por O'Brien, um burocrata do círculo interno do IngSoc que tenta cooptá-lo a não abandonar a fé no Grande Irmão.

De fato, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro é uma metáfora sobre o poder e as sociedades modernas. George Orwell escreveu-o animado de um sentido de urgência, para avisar os seus contemporâneos e as gerações futuras do perigo que corriam, e lutou desesperadamente contra a morte - sofria de tuberculose - para poder acabá-lo. Ele foi um dos primeiros simpatizantes ocidentais da esquerda que percebeu para onde o stalinismo caminhava e é aí que ele vai buscar a inspiração - lendo Mil Novecentos e Oitenta e Quatro percebe-se que o Grande Irmão é baseado na visão de Orwell sobre os totalitarismos de vária índole que dominavam a Europa e Ásia na época. Stalin, também Hitler e Churchill foram algumas das figuras que inspiraram Orwell a escrever o romance.

O Estado controlava o pensamento dos cidadãos, entre muitos outros meios, pela manipulação da língua. Os especialistas do Ministério da Verdade criaram a Novilíngua, uma língua ainda em construção, que quando estivesse finalmente completa impediria a expressão de qualquer opinião contrária ao regime. Uma das mais curiosas palavras da Novilíngua é a palavra duplipensar que corresponde a um conceito segundo o qual é possível ao indivíduo conviver simultaneamente com duas crenças diametralmente opostas e aceitar ambas. Os nomes dos Ministérios em 1984 são exemplos do duplipensar. O Ministério da Verdade, ao rectificar as notícias, na verdade estava mentindo. Porém, para o Partido, aquela era a verdade. Assim, o conceito de duplipensar é plausível a um cidadão da Oceania.

Outra palavra da Novilíngua era Teletela, nome dado a um dispositivo através do qual o Estado vigiava cada cidadão. A Teletela era como que um televisor bidirecional, isto é, que permitia tanto ver quanto ser visto. Nele, o "papel de parede" (ou seja, quando nenhum programa estava sendo exibido) era a figura inanimada do líder máximo, o Grande Irmão.


Uma das informações mais curiosas e bem formuladas por Orwell em seu livro é a teoria da guerra, enunciada abaixo. Ultrapassando os limites da ficção, podemos aplicar esta teoria à realidade e refletirmos sobre os verdadeiros motivos das guerras.

No livro, Orwell expõe uma teoria da Guerra. Segundo ele, o objectivo da guerra não é vencer o inimigo nem lutar por uma causa. O objetivo da guerra é manter o poder das classes altas, limitando o acesso à educação, à cultura e aos bens materiais das classes baixas. A guerra serve para destruir os bens materiais produzidos pelos pobres e para impedir que eles acumulem cultura e riqueza e se tornem uma ameaça aos poderosos. Assim, um dos lemas do Partido, "guerra é paz", é explicado no livro de Emmanuel Goldstein: "Uma paz verdadeiramente permanente seria o mesmo que a guerra permanente".


( Fonte: Wikipédia, a Enciclopédia Livre )

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A Origem das Espécies


Às vezes, ao postar sobre determinados livros, prefiro me limitar à colocar sobre tais apenas recortes de trechos ou resumos retirados de fontes que não sejam o próprio livro. Devido à sedutora facilidade com que resenhas prontas podem ser encontradas pela net me liberto de ter de escrever eu mesmo o post e ganho com isso precioso tempo sem contudo prejudicar o objetivo do blog, que é simplesmente ser uma espécie de diário de leitura e me permitir relembrar livros lidos quando já houver se passado algum tempo.


A obra da vez foi 'A Origem das Espécies' do naturalista visionário Charles Darwin.

“Posto que esteja profundamente convencido da verdade das opiniões que em breves palavras tenho exposto no presente volume, não espero convencer certos naturalistas, muito experimentados sem dúvida, mas que, desde longo tempo, estão habituados a ver um conjunto de fatos num ponto de vista diretamente oposto ao meu. É muito fácil ocultar a nossa ignorância em expressões tais como plano de criação, unidade de tipo, etc.; e pensar que nos explicamos quando apenas repetimos um mesmo facto. Aquele que tiver qualquer disposição natural a ligar mais importância a algumas dificuldades não resolvidas do que à explicação de um certo número de fatos, rejeitará certamente a minha teoria. Alguns naturalistas dotados de uma inteligência aberta e já disposta a pôr em dúvida a imutabilidade das espécies podem ser influenciados pelo conteúdo deste volume, mas tenho mais confiança no futuro, nos novos naturalistas, que poderão estudar imparcialmente os dois lados da questão. Todo o que for levado a admitir a imutabilidade das espécies prestará verdadeiros serviços exprimindo conscienciosamente a sua convicção, porque somente assim se poderá desembaraçar a questão de todos os preconceitos que a cercam.
Alguns naturalistas eminentes exprimiram, recentemente, a opinião de que há, em certos gêneros, uma multidão de espécies, consideradas como tais, que não são, contudo, verdadeiras espécies; enquanto que há outras que são reais, isto é, que foram criadas de uma maneira independente. É esta, me parece, uma singular conclusão. Depois de terem reconhecido um conjunto de formas, que consideraram, muito recentemente ainda, como criações especiais, que são ainda consideradas como tais pela grande maioria dos naturalistas, e que, consequentemente, têm todos os caracteres exteriores de verdadeiras espécies, admitem que estas formas são o produto de uma série de variações e recusam estender esta maneira de ver a outras formas um pouco diferentes. Não pretendem, contudo, poder definir, ou mesmo conjecturar, quais são as formas que foram criadas e quais as que são produtos de leis secundárias. Admitem a variabilidade como vera causa num caso, e rejeitam-na arbitrariamente noutro, sem estabelecer qualquer distinção fixa entre os dois. O dia virá em que se poderão assinalar estes fatos como um curioso exemplo da cegueira resultante de uma opinião preconcebida. Estes sábios não parecem admirar-se mais de um ato miraculoso da criação do que de uma origem ordinária. Mas crêem eles realmente que em inumeráveis épocas da história da Terra certos átomos elementares receberam ordem de se agruparem em tecidos vivos? Admitem eles que em cada suposto ato de criação se tenha produzido um ou muitos indivíduos? As espécies infinitamente numerosas de plantas e animais terão sido criadas no estado de sementes, de óvulos ou de perfeito desenvolvimento? E, no caso dos mamíferos, terão essas espécies, depois da criação, trazido os indícios mentirosos da nutrição intra-uterina? A estas questões, os partidários da criação de algumas formas vivas ou de uma só forma não saberiam, sem dúvida, que responder. Diversos sábios têm sustentado que é tão fácil acreditar na criação de centos de milhões de seres como na criação de um só; mas em virtude do axioma filosófico de a menor ação, formulado por Maupertuis, o espírito é levado mais voluntariamente a admitir o menor número, e não podemos certamente crer que uma quantidade inúmera de formas da mesma classe tenham sido criadas com os sinais evidentes, mas enganosos, da sua descendência de um mesmo antepassado.
Como recordação de um estado de coisas anterior, tenho empregado, nos parágrafos precedentes, muitas expressões que implicam nos naturalistas a crença na criação de cada espécie. Tenho sido muito censurado de me haver exprimido assim; mas era isto, sem dúvida alguma, a opinião geral quando da aparição da primeira edição da obra atual. Discuti outrora com muitos naturalistas sobre a evolução, sem encontrar jamais o menor testemunho simpático. É provável, portanto, que alguns acreditassem na evolução, mas ficassem silenciosos, ou se exprimissem de uma maneira de tal modo ambígua, que não fosse fácil compreender a sua opinião. Hoje, tudo mudou e quase todos os naturalistas admitem o grande princípio da evolução. Há, contudo, quem acredite ainda que as espécies têm subitamente produzido, por meios ainda inexplicáveis, formas novas totalmente diferentes; mas, como procurei aqui demonstrar, há provas poderosas que se opõem a toda a admissão destas modificações bruscas e consideráveis. No ponto de vista científico, e mesmo conduzindo a estudos ulteriores, há apenas pouca diferença entre a crença de novas formas terem sido produzidas subitamente de uma maneira inexplicável pelas antigas formas muito diferentes, e a velha crença na criação das espécies por meio do barro.
Até onde, poderão perguntar-me, levais vós a vossa doutrina da modificação das espécies? Eis uma pergunta à qual é difícil responder, porque, quanto mais distintas são as formas que consideramos, mais os argumentos em favor da comunhão de descendência diminuem e perdem a sua força.”


(Trecho de “A Origem das Espécies”-Charles Darwin págs 483 e 484 - Tradução de Joaquim Dá Mesquita Paul )


«Para concluir, não deixeis crer ou sustentar, devido a uma idéia muito acentuada da fraqueza humana ou a uma moderação mal entendida, que o homem pode ir longe ou ser instruído com a palavra de Deus, ou com a do livro das obras de Deus, isto é, em religião ou em filosofia; mas que todo o homem se esforce por progredir cada vez mais numa e noutra, e tirando disto vantagem sem jamais Parar.»
BACON, «Advancement of Learning».

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Tempo de Delicadeza



Reta final de preparação pré-vestibular, e eis que uma nova luz surge no meu túnel: Affonso Romano de Sant'Anna. Para provar que nem só de teses chatíssimas e arcaicas vive a boa literatura; a literatura de verdade vive, inclusive, melhor sem arcaísmos, com a delicadeza das rosas.






Tempo de delicadeza


Affonso Romano de Sant'Anna


"Sei que as pessoas estão pulando na jugular umas das outras.
Sei que viver está cada vez mais dificultoso.
Mas talvez por isto mesmo ou talvez devido a esse setembro azulzinho, a essa primavera que vem aí, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nesta crônica, varando os tiroteios, os seqüestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nos cruzamentos da televisão ou do cinema com a própria vida.


Talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. Drummond dizia: Sejamos pornográficos, docemente pornográficos. Parece que aceitaram exageradamente seu convite, e a coisa acabou em grosseiramente pornográficos. Por isto, é necessário reverter poeticamente a situação e com Vinícius de Moraes ou Rubem Braga dizer em tom de elegia ipanemense:


Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados. Com a delicadeza de São Francisco, se pudermos. Com a delicadeza rija de Gandhi, se quisermos.


Vejam o nosso sedutor e exemplar Vinícius, que há 20 anos nos deixou, delicadamente. Era um profissional da delicadeza. Naquela sua pungente Elegia ao primeiro amigo, nos dizia:


Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água.
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo.


Está aí: porque somos ferozes precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados, que o sejam ferozmente delicados. Lembram-se de Rimbaud? Ele dizia: Por delicadeza, eu perdi minha vida.


Há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. Outras, até o emprego. Há as que perdem o amor por amorosa delicadeza. Sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza.


Confesso que, buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses do século passado. Mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. Não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. Mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de ser cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.


A delicadeza não é só uma categoria ética. Alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.


Ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de Mozart. A delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um Vermeer, por exemplo. A delicadeza repousante das garrafas nas naturezas-mortas de Morandi. Na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.


Sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um MST com sua foice e fúria dos prédios ocupados. Mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres desse país há 500 anos?


Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou o seu contato com os índios brasileiros: Morrer se preciso for, matar nunca.
Sei que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo, não nos deixam ser delicados.


E eu não sei?


Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E se necessário for, cruelmente delicados." (Crônica TEMPO DE DELICADEZA (L&PM) )


É claro que essa não é a única crônica boa do cara, mas ficará relatada por trazer uma idéia poética e filosófica interessantíssima e urgente.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O Caso da Borboleta Intrusa (Insônia pt. 2 )


Certa noite, acreditem se quiser, uma pequena borboleta entrou no meu quarto. Sem marcar hora, protocolar com nenhuma assistente subordinada ou mesmo fazer qualquer menção de se apresentar e dizer à que veio, entrou com alvoroço, debatendo-se entre cortinas e grades de janela.
À primeira vista, entrou pelo simples fato de ter encontrado a janela aberta, como no caso do cão da piada. Porém, quando fui argumentar que ela devia se ter enganado, que não atendíamos aqui borboletas de asas manchadas, bem como de nenhum outro tipo, limitou-se a ignorar meus apelos. No descaso que só as borboletas com manchas brancas conseguem ostentar, ela fingia não me ouvir. Não moveu sequer uma pata quando ameacei entregá-la a cães e gatos. Também pudera, como borboleta bem esclarecida que era, sabia não estar incluída na dieta de nenhum dos dois predadores.
Aplicando dum estratagema mais ofensivo, borrifei na invasora o desodorante mais forte que encontrei, a fim de espantá-lá. Mostrando-se claramente superior, limitou-se a voar para outro canto da parede. Fiz mandinga, acendi velas e canonizei uma Nossa Senhora das Borboletas Deslocadas de Seu Lugar. Nada a abalou.
A essa altura, estava mesmo convencido que borboletas não entram aleatoriamente por janelas. Não nas minhas janelas. E então me preocupei. Tratei de ter certeza de que não se tratava de Átropos, a mariposa mensageira da morte. O Google disse que meus dias só estariam contados se a borboleta suspeita desprendesse um lamentoso canto agudo e tivesse uma caveira humana tatuada nas asas, além de ter quase uns dois palmos de envergadura. Hipóteses descartadas. Providenciei silêncio e atentei para aquelas estáticas asas contrastando com a parede branca. Verifiquei se os mínimos movimentos das antenas não descreviam alguma mensagem sobrenatural. Um “Never More” gesticulado, quem sabe?...
Nada.
Ao cabo de todas minhas tentativas, contrariando apelações e revogações, silenciosamente,como se eu não fosse digno de seu adeus, alçou seu vôo janela afora. Senti uma angústia esquisita.
Naquela noite, não dormi.

( Pablo Vinícius )

sábado, 24 de outubro de 2009

O Moço do Saxofone

Lygia Fagundes Telles

Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá.
Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no
nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente.
E tinha a música do saxofone.
Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.
- O que é isso? - eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que está tocando?
- É o moço do saxofone.
Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China.
- E o quarto dele fica aqui em cima?
James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder.
- Aqui em cima.
Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo meu garfo.
- É uma música desgraçada de triste - fui dizendo.
- A mulher engana ele até com o periquito - respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. - O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece.
- Deitou com você?
- É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar...
Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não agüentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora.
- Parece gente pedindo socorro - eu disse, enchendo meu copo de cerveja. - Será que ele não tem uma música mais alegre?
James encolheu o ombro.
- Chifre dói.
Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher.
-- Mas por quê? - perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James do que o saxofone.
- Uma mulher como ela tem que ter seu quarto - explicou James, tirando um palito do paliteiro. - E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.
- E os outros não reclamam?
- A gente já se acostumou.
Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo.
Um anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.
- Pode me dizer de onde vem tanto anão? - perguntei à madame, e ela riu.
- Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas...
Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim.
- Licença?
Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.
- A que horas é a janta? - perguntei para a madame, enquanto pagava.
- Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito - avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. - O senhor gostou da comida?
Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar.
- Sim senhor - eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal briga.
- O pior é que eu estava de porre, mal pude me defender!
Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio.
- Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?
James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque.
- Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente - resmungou ele, tirando um palito. – Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!
Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem.
- Não topo isso, pomba.
- Isso o quê?
Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação.
- O café é fresco? - perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele.
- Feito agora.
Pela cara vi que era mentira.
- Não é preciso, tomo na esquina.
A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para aporta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o aninho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.
- Sim senhor!
- Sim senhor o quê? - perguntou James.
- Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa.
James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.
- Mulher é o diabo...
Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos.
- Ora, não precisava se incomodar...
Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume.
- Amanhã? - perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. - Às sete, está bem?
- É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe.
Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.
- Desculpe, me enganei de quarto - eu disse, com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar.
O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.
- E na porta adiante - disse ele baixinho, indicando com a cabeça.
Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro.
- Está servido?
- Obrigado, não posso fumar.
Fui recuando de costas. E de repente não agüentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas.
- E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?
- Eu toco saxofone.
Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos.
Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.


In "Antes do Baile Verde", José Olympio Editores - Rio de Janeiro,
1979, e relacionado entre "Os cem melhores contos brasileiros do século", uma seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 233.

A Caçada

Lygia Fagundes Telles

A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus anos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros.
Uma mariposa levantou vôo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas.
- Bonita imagem - disse ele.
A velha tirou um grampo do coque, e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo.
- É um São Francisco.
Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja.
Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.
- Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso... Pena que esteja nesse estado.
O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.
- Parece que hoje está mais nítida...
- Nítida? - repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. - Nítida, como?
- As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela?
A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.
- Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergunta?
- Notei uma diferença.
- Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido acrescentou, tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo: - Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto... Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu.
- Extraordinário...
A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar.
Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo.
- Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar, é capaz de cair em pedaços.
O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?...
Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta.
O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano.
- Parece que hoje tudo está mais próximo - disse o homem em voz baixa. - É como se... Mas não está diferente?
A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los.
- Não vejo diferença nenhuma.
- Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta...
- Que seta? O senhor está vendo alguma seta?
- Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou.
- Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo - lamentou, disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído, com suas chinelas de lã.
Esboçou um gesto distraído: - Fique aí à vontade, vou fazer meu chá.
O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu - conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador?
Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas, detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta... A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco.
Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira... “Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?”
Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos... E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. “Antes do aproveitamento da tapeçaria...” - murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço.
Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?...
Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina.
Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? “Que loucura!... E não estou louco”, concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. “Mas não estou louco.”
Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo.
Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro do travesseiro, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: “Que seta? Não estou vendo nenhuma seta...” Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso, podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. “Sou o caçador?” Mas ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue.
Acordou com o próprio grito que se estendeu dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Ah, aquele calor e aquele frio! Enrolou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tapeçaria? Podia revê-la, tão nítida, tão próxima que, se estendesse a mão, despertaria a, folhagem. Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la!
Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica:
- Hoje o senhor madrugou.
- A senhora deve estar estranhando, mas...
- Já não estranho mais nada, moço. Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho...
“Conheço o caminho” - murmurou, seguindo lívido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore!
Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante.
Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?...
Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado.
Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor!
“Não...” - gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.

Resumo analisado:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/antes_do_baile_verde_livro

In “Antes do baile verde”, José Olympio Editora
– Rio de Janeiro, 1979, foi incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva
Rio de Janeiro, 2000, pág. 265.

Venha ver o pôr-do-Sol

Lygia Fagundes Telles

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalha­das sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estu­dante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sa­patos.
- Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele che­garia aqui em cima.
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância... quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?
- Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando o lenço na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!
- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço, rin­do. - Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? - Abrandara a voz. - E que é isso ai? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mor­tos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo - acrescen­tou, lançando um olhar 'às crianças rodando na sua ciranda.
Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.
- Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o pro­grama?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enter­rada aí. Vamos entrar e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr-do-sol!... Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me ator­menta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino em falta.
- Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu aparta­mento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fecha­dura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... - disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. Aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente aperta­dos. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta: não era nesse instante tão jovem como aparen­tava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. - Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentís­simo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado - prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. - Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não su­porto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.
O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepul­turas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos enegrecidos como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita ao som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava con­duzir como uma criança. As vezes mostrava certa curiosi­dade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente - exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa incerteza. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repenti­namente ficou envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retar­dou o passo.
- Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio glingue-glongue... Apesar de tudo, tenho às vezes sau­dade daquele tempo. Que ano aquele. Palavra que quan­do penso não entendo até hoje como agüentei tanto. Um ano!
- É que você tinha lido A Dama das Camélias, fi­cou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?
- Nenhum - respondeu ela franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades. - Fez um muxoxo. - Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
- Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha bro­tando insólita de dentro da fenda - o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim.
- Deu-lhe um beijo rápido na face. - Chega, Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! Olhou para trás - Nunca andei tanto Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio - lamentou ele empurrando a para a frente Dobrando esta alameda fica o jazigo da minha gente e de lá que se vê o pôr-do-sol.- E tomando a pela cintura. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os do­mingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por ai, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, tão brilhantes.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que... - Fez um gesto. - Enfim, não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devol­veu-o.
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquiria a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre Os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pen­dendo como farrapo. de um manto que alguém colocara sobre os ombros de Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naquelas ruínas.
- Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira.
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpi­nho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério e precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó - murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. - A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se para ver melhor.
- Todas essas gavetas estão cheias?
- Cheias?... - Sorriu. - Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe - prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, em­butido no centro da gaveta.
Ela cruzou OS braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
- Vamos Ricardo, vamos.
- Você está com medo.
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado.
- A priminha Maria Camila. Lembro até do dia em que tirou esse retrato. Foi duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... - Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. - Não, não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impres­sionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbar­rar em nada.
- Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxer­gando...
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à compa­nheira.
- Pegue, dá para ver muito bem... - Afastou-se para o lado. - Repare nos olhos.
- Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... - Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. - Maria Camila, nascida em vinte de maio de mil e oitocen­tos e falecida... - Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. - Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou a olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu menti­roso! Brincadeira mais cretina! - exclamou ela, subindo rapidamente a escada. - Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, ime­diatamente! - ordenou, torcendo o trinco. - Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastan­do devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! - Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadís­simo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
- Boa-noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. - Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! - exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. - Não, não...
Voltado ainda para ela, Ricardo recuou até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa-noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
- Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
- NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remo­tos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brin­cavam de roda.


1958

In “Mistérios”, Nova Fronteira,
4ª Edição, 1981.



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Verde Lagarto Amarelo

Lygia Fagundes Telles

Ele entrou no seu passo macio, sem ruído, não chegava a ser felino: apenas um andar discreto. Polido.
- Rodolfo! Onde está você?... Dormindo? - perguntou quando me viu levantar da poltrona e vestir a camisa. Baixou o tom de voz. - Está sozinho?
Ele sabe muito bem que estou sozinho, ele sabe que sempre estou sozinho.
- Estava lendo. - Dostoievski? Fechei o livro. Nada lhe escapava.
- Queria lembrar uma certa passagem... Só que está quente demais, acho que este é o dia mais quente desde que começou o verão.
Ele deixou a pasta na cadeira e abriu o pacote de uvas, trouxera um pacote de uvas roxas.
- Estavam tão maduras, olha só que beleza - disse tirando
um cacho e balançando-o no ar como um pêndulo. - Prova! Está uma delícia.
Com um gesto casual, atirei meu paletó em cima da mesa, cobrindo o rascunho de um conto que começara naquela manhã. - Já é tempo de uvas? - perguntei colhendo um bago. Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa, sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto.
Trouxe também uma coisa... Mostro depois.
Encarei-o. Quando ele sorria ficava menino outra vez. Seus olhos tinham o mesmo brilho úmido das uvas.
Que coisa?
Mas se eu já disse que é surpresa! Mostro depois.
Não insisti. Conhecia de sobra aquela antiga expressão com que vinha me anunciar que tinha algo escondido no bolso ou debaixo do travesseiro. Acabava sempre por me oferecer seu tesouro:
a maçã, o cigarro, a revistinha pornográfica, o pacote de suspiros, mas antes ficava algum tempo me rondando com esse ar de secreto deslumbramento.
Vou fazer um café - anunciei.
Só se for para você, tomei há pouco na esquina.
Era mentira. O bar da esquina era imundo e para ele o café fazia parte de um ritual nobre, limpo. Dizia isso para me poupar, estava sempre querendo me poupar.
Na esquina?
Quando comprei as uvas...
Meu irmão. O cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua. E aquela cor nas pupilas.
Mamãe achava que seus olhos eram cor-de-violeta. Cor-de-violeta?
Foi o que ela disse à tia Débora, meu filho Eduardo tem os olhos cor-de-violeta...
Ele tirou o paletó. Afrouxou a gravata. Como é que são olhos cor-de-violeta? Cor-de-violeta - eu respondi abrindo o fogareiro.
Ele riu apalpando os bolsos do paletó até encontrar o cigarro. Concentrou-se.
Meu Deus, tinha um canteiro de violetas no jardim de casa... Não eram violetas, Rodolfo?
Eram violetas.
E uma parreira, lembra? Nunca conseguimos um cacho maduro daquela parreira - disse amarfanhando com um gesto afetuoso o papel das uvas. - Até hoje não sei se eram doces. Eram doces?
Também não sei, você não esperava amadurecer. Vagarosamente ele tirou as abotoaduras e foi dobrando a manga da camisa com aquela arte toda especial que tinha de dobrá-la sem fazer rugas, na exata medida do punho. Os braços musculosos de nadador. Os pêlos dourados. Fiquei a olhar as abotoaduras que tinham sido do meu pai.
A Ofélia quer que você almoce domingo com a gente. Ela releu seu romance e ficou no maior entusiasmo, gostou ainda mais do que da primeira vez, você precisa ver com que interesse analisou as personagens, discutiu os detalhes.
Domingo já tenho um compromisso - eu disse enchendo a chaleira de água.
E sábado? Não me diga que sábado você também não pode...
Aproximei-me da janela. O sopro do vento era ardente como se a casa estivesse no meio de um braseiro. Respirei de boca aberta agora que ele não me via, agora que eu podia amarfanhar
a cara como ele amarfanhara o papel. Esfreguei nela o lenço, até quando, até quando?!... E me trazia a infância, será que ele não vê que para mim foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê? Por que tem de vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar nada, não quero saber de nada! Fecho os olhos. Está amanhecendo e o sol está longe, tem brisa na campina, cascata, orvalho gelado deslizando na corola, chuva fina no meu cabelo, a montanha e o vento, todos os ventos soprando. Os ventos. Vazio. Imobilidade e vazio. Se eu ficar assim imóvel, respirando leve, sem ódio, sem amor, se eu ficar assim um instante, sem pensamento, sem corpo...
- E sábado? Ela quer fazer aquela torta de nozes que você adora.
- Cortei o açúcar, Eduardo.
- Mas saia um pouco do regime, você emagreceu, não emagreceu?
- Ao contrário, engordei. Não está vendo? Estou enorme. - Não é possível! Assim de costas você me pareceu tão mais magro, palavra que eu já ia perguntar quantos quilos você perdeu. Agora a camisa se colava ao meu corpo. Limpei as mãos viscosas no peitoril da janela e abri os olhos que ardiam, o sal do suor é mais violento do que o sal das lágrimas. “Esse menino transpira tanto, meus céus! Acaba de vestir roupa limpa e já começa a transpirar, nem parece que tomou banho. Tão desagradável!...” Minha mãe não usava a palavra suor que era forte demais para seu vocabulário, ela gostava das belas palavras, das belas imagens. Delicadamente falava em transpiração com aquela elegância em vestir as palavras como nos vestia. Com a diferença que Eduardo se conservava limpo como se estivesse numa redoma, as mãos sem poeira, a pele fresca. Podia rolar na terra e não se conspurcava, nada chegava a sujá-lo realmente porque mesmo através da sujeira podia se ver que estava intacto. Eu não. Com a maior facilidade me corrompia lustroso e gordo, o suor a escorrer pelo pescoço, pelos sovacos, pelo meio das pernas. Não queria suar, não queria, mas o suor medonho não parava de escorrer manchando a camisa de amarelo com uma borda esverdinhada, suor de bicho venenoso, traiçoeiro, malsão. Enxugava depressa a testa, o pescoço, tentava num último esforço salvar ao menos a camisa. Mas a camisa já era uma pele enrugada aderindo à minha com meu cheiro, com a minha cor. Era menino ainda mas houve um dia em que quis morrer para não transpirar mais.
Na noite passada sonhei com nossa antiga casa - disse ele aproximando-se do fogareiro. Destapou a chaleira, espiou dentro. Tapou-a de novo. - Não me lembro bem mas parece que a casa estava abandonada, foi um sonho estranho.
Também sonhei com a casa mas já faz tempo - eu disse. Ele aproximou-se. Esquivei-me em direção ao armário. Tirei as xícaras.
Mamãe apareceu no seu sonho? - perguntou ele. Apareceu. O pai tocava piano e mamãe... Rodopiávamos vertiginosos numa valsa e eu era magro, tão magro que meus pés mal roçavam o chão, senti mesmo que levantavam vôo e eu ria enlaçando-a em volta do lustre quando de repente o suor começou a escorrer, escorrer.
Ela estava viva?
Seu vestido branco se empapava do meu suor amarelo-verde mas ela continuava dançando, desligada, remota.
Estava viva, Rodolfo?
- Não, era uma valsa póstuma - eu disse colocando na frente dele a xícara perfeita. Reservei para mim a que estava rachada. - Está reconhecendo essa xícara?
Ele tomou-a pela asa. Examinou-a. Sua fisionomia iluminou-se com a graça de um vitral varado pelo sol.
Ah!... as xicrinhas japonesas. Sobraram muitas ainda? O aparelho de chá, o faqueiro, os cristais e os tapetes tinham ficado com ele. Também os lençóis bordados, obriguei-o a aceitar tudo. Ele recusava, chegou a se exaltar, “não quero, não é justo, não quero! Ou você fica com a metade ou então não aceito nada! Amanhã você pode se casar também...” Nunca, respondi. Moro só, gosto da casa sem nenhum enfeite, quanto mais simples melhor. Ele parecia não ouvir uma só palavra enquanto ia amontoando os objetos em duas porções, “olha, isto você leva que estava no seu quarto...” Tive de recorrer à violência. Se você teimar em me deixar essas coisas, assim que você virar as costas jogo tudo na rua! Cheguei a agarrar uma jarra, no meio da rua! Ele empalideceu, os lábios trêmulos. “Você jamais faria isso, Rodolfo. Cale-se, por favor, que você não sabe o que está dizendo.” Passei as mãos na cara ardente. E a voz da minha mãe vindo das cinzas: “Rodolfo, por que você há de entristecer seu irmão? Não vê que ele está sofrendo? Por que você faz assim?!” Abracei-o. Ouça Eduardo, sou um tipo mesmo esquisito, você está farto de saber que sou meio louco. Não quero mesmo nada, não sei explicar mas não quero, está me entendendo? Leve tudo à Ofélia, presente meu. Não posso dar a vocês um presente de casamento? Para não dizer que não fico com nada, olha... está aqui, pronto, fico com essas xícaras!
Fina como casca de ovo - disse ele batendo com a unha na porcelana. - Ficavam na prateleira do armário rosado, lembra? Esse armário está na nossa saleta.
Despejei água fervente na caneca. O pó de café foi se diluindo resistente, difícil. Minha mãe. Depois, Ofélia. Por que não haveria de ficar também com os lençóis?
- E Ofélia? Para quando o filho?
Ele apanhou a pilha de jornais velhos que estavam no chão, ajeitou-a cuidadosamente e esboçou um gesto de procura, devia estar sentindo falta de um lugar certo para serem guardados os
jornais já lidos. Teve uma expressão de resignado bom humor, mas então a desordem do apartamento comportava um móvel assim supérfluo? Enfiou a pilha na prateleira mais vazia da estante e voltou-se para mim. Ficou seguindo-me com o olhar enquanto eu procurava no armário debaixo da pia a lata onde devia estar o açúcar. Uma barata fugiu atarantada, escondendo-se debaixo de uma tampa de panela e logo uma outra maior se despencou não sei de onde e tentou também o mesmo esconderijo. Mas a fresta era estreita demais e ela mal conseguiu esconder a cabeça, ah, o mesmo humano desespero na procura de um abrigo. Abri a lata de açúcar e esperei que ele dissesse que havia um novo sistema de acabar com as baratas, era facílimo, bastava chamar pelo telefone e já aparecia o homem de farda cáqui e bomba em punho e num segundo pulverizava tudo. Tinha em casa o número do telefone, podia me dar, nem baratas nem formigas.
No próximo mês, parece. Está tão lépida que nem acredito que esteja nas vésperas - disse ele me contornando pelas costas. Não perdia um só dos meus movimentos. - E adivinha agora quem vai ser o padrinho.
Que padrinho?
- Do meu filho, ora!
Não tenho a menor idéia. Você.
Minha mão tremia como se ao invés de açúcar eu estivesse mergulhando a colher em arsênico. Senti-me infinitamente mais gordo. Mais vil. Tive vontade de vomitar.
- Não faz sentido, Eduardo. Não acredito em Deus, não acredito em nada.
E daí? - perguntou ele, servindo-se de mais açúcar. Atraiu-me quase num abraço. - Fique tranqüilo, eu acredito por nós dois. Tomei de um só trago o café amargo. Uma gota de suor pingou no pires. Passei a mão pelo queixo. Não pudera ser pai, seria padrinho. Não era ser amável? Um casal amabilíssimo. A pretexto de aquecer o café, fiquei de costas e então esfreguei furtivamente o pano de prato na cara.
Era essa a surpresa? - perguntei e ele olhou-me com inocência. Repeti a pergunta: - A surpresa! Quando chegou você disse que...
Ah!... não, não! Não é isso não - exclamou e riu apertando os olhos que riam também com uma ponta de malícia. - A surpresa é outra. Se der certo, Rodolfo, se der certo!... Enfim, você é quem vai decidir. Ponho nas suas mãos.
Era exatamente a expressão da minha mãe quando vinha me preparar para uma boa notícia. Rondava, rondava e ficava observando-me reticente, saboreando o segredo até o momento em que não resistia mais e contava. A condição era invariável: “Mas você vai me prometer que não vai comer nenhum doce durante uma semana, só uma semana!”
E se ele fosse morar longe? Podia se mudar de cidade, viajar. Mas não. Precisava ficar por perto, sempre em redor, olhando-me. Desde pequeno, no berço já me olhava assim. Não precisaria me odiar, eu nem pediria tanto, bastava me ignorar, se ao menos me ignorasse. Era bonito, inteligente, amado, conseguiu sempre fazer tudo muito melhor do que eu, melhor do que os outros, em suas mãos as menores coisas adquiriam outra importância, como que se renovavam. E então? Natural que esquecesse o irmão obeso, malvestido, malcheiroso. Escritor, sim, mas nem aquele tipo de escritor de sucesso, convidado para festas, dando entrevistas na televisão: um escritor de cabeça baixa e calado, abrindo com as mãos em garra seu caminho. Se ao menos ele... mas não, claro que não, desde menino eu já estava condenado ao seu fraterno amor. Às vezes, escondia-me no porão, corria para o quintal, subia na figueira, ficava imóvel, um lagarto no vão do muro, pronto, agora não vai me achar. Mas ele abria portas, vasculhava armários, abria a folhagem e ficava rindo por entre lágrimas. Engatinhava ainda quando saía à minha procura, farejando meu rastro. - Rodolfo, não faça seu irmãozinho chorar, não quero que ele fique triste!” Para que ele não ficasse triste, só eu soube que ela ia morrer. “Você já é grande, você deve saber a verdade
disse meu pai olhando reto nos meus olhos. - É que sua mãe não tem nem...
Não completou a frase. Voltou-se para a parede e ali ficou de braços cruzados, os ombros curvos. Só eu e você sabemos. Ela desconfia mas de jeito nenhum quer que seu irmãozinho saiba, está entendendo?” Eu entendia. Na, sua última festa de aniversário ficamos reunidos em redor da cama. “Laura é como o rei daquela história - disse meu pai, dando-lhe de beber um gole de vinho. - Mas em vez de transformar tudo em ouro, quando toca nas coisas, transforma tudo em beleza.” Com os olhos cozidos de tanto chorar, ajoelhei-me e fingindo arrumar-lhe o travesseiro, pousei a cabeça ao alcance da sua mão, ah, se me tocas-se com um pouco de amor. Mas ela só via o broche, um caco de vidro que Eduardo achou no quintal e enrolou em fiozinhos de arame formando um casulo, “mamãezinha querida, eu que fiz para você!” Ela beijou o broche. E o arame ficou sendo prata e o caco de garrafa ficou sendo esmeralda. Foi o broche que lhe fechou a gola do vestido. Quando me despedi, apertei sua mão gelada contra minha boca, e eu, mamãe, e eu?...
Esqueci de oferecer biscoitos, olha aí, você gosta - eu disse tirando a lata do armário.
- É sua empregada quem faz?
- Minha empregada só vem uma vez por semana, comprei na rua - acrescentei e lancei-lhe um olhar. Que surpresa era essa agora? O que é que eu devia decidir? Eu devia decidir, ele disse. Mas o quê? Interpelei-o: - Que é que você está escondendo, Eduardo? Não vai me dizer?
Ele pareceu não ter ouvido uma só palavra. Quebrou a cinza do cigarro no cinzeiro, soprou o pouco que lhe caiu na calça e inclinou-se para os biscoitos.
Ah!... rosquinhas. Ofélia aprendeu a fazer sequilhos no caderno de receitas da mamãe mas estão longe de ser como aqueles. Ele comia sequilhos quando entrei no quarto. Ao lado, a caneca de chocolate fumegante. Eu tinha tomado chá. Chá. Dei uma volta em redor dele. O Júlio já está na esquina esperando, avisei. Veio me dizer que tem de ser agora. Ele então se levantou, calçou a sandália, tirou o relógio de pulso e a correntinha do pescoço. Dirigiu-se para a porta com uma firmeza que me espantou. Vi-o ensangüentado, a roupa em tiras. Você é menor, Eduardo, você vai apanhar feito cachorro! Ele abriu os braços. “E daí? Quer que a turma me chame de covarde?” Sentei-me na cadeira onde ele estivera e ali fiquei encolhido, tomando o seu chocolate e comendo sequilhos. Tinha a boca cheia quando ouvi a voz da minha mãe chamando: “Rodolfo, Rodolfo!” Agora ela o carregava em prantos, tentando arrancar-lhe o canivete enterrado no peito até o cabo.
Procurei seu romance em duas livrarias e não encontrei, queria dar a uns amigos. Está esgotado, Rodolfo? O vendedor disse que vende demais.
Exagero. Talvez se esgote mas não já.
A boca cheia de sequilhos e o suor escorrendo por todos os poros, escorrendo. A voz da minha mãe insistiu enérgica: “Rodolfo, você está me ouvindo? Onde está o Eduardo?!” Entrei no quarto dela. Estava deitada, bordando. Assim que me viu, sua fisionomia se confrangeu. Deixou o bordado e ficou balançando a cabeça, - “Mas filho, comendo de novo?! Quer engordar mais ainda? - Suspirou, dolorida. - Onde está seu irmão?” Encolhi os ombros, não sei, não sou pajem dele. Ela ficou me olhando. “Essa é maneira de me responder, Rodolfo? Hein?!...” Desci a escada comendo o resto dos sequilhos que escondi nos bolsos. O silêncio seguiu-me descendo a escada degrau por degrau, colado ao chão, viscoso, pesado. Parei de mastigar. E de repente me precipitei pela rua afora, eu o queria vivo, o canivete não! Encontrei-o sentado na sarjeta, a camisa rasgada, um arranhão fundo na testa. Sorriu palidamente. Ofegava. Júlio tinha acabado de fugir. Cravei o olhar no seu peito. Mas ele não usou o canivete? perguntei. Apoiando-se na árvore, levantou-se com dificuldade, tinha torcido o pé. “Que canivete?...” Baixando a cabeça que latejava, inclinei-me até o chão. Você não pode andar, eu disse, apoiando as mãos nos joelhos. Vamos, monta em mim. Ele obedeceu. Estranhei; era tão magro, não era? Mas pesava como chumbo. O sol batia em cheio em nós enquanto o vento levantava as tiras da sua camisa rasgada. Vi nossa sombra no muro, as tiras se abrindo como asas. Enlaçou-me mais fortemente, encostou o queixo no meu ombro e teve um breve soluço, “que bom que você veio me buscar...”
Seu novo livro? - perguntou ele na maior excitação. Encontrara o rascunho em cima da mesa. - Posso ler, Rodolfo? Posso?
Tirei-lhe as folhas das mãos e fechei-as na gaveta. Era o que me restara: escrever. Será possível que ele também?...
Não, não é possível, Eduardo - eu disse, tentando abrandar a voz. - Está tudo muito no início, trabalho mal no calor - acrescentei meio distraidamente. Olhei para sua pasta na cadeira e adivinhei a surpresa. Senti meu coração se fechar como uma concha. A dor era quase física. Olhei para ele. - Você escreveu um romance. É isso? Os originais estão na pasta... É isso? Ele então abriu a pasta.


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