sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O Caso da Borboleta Intrusa (Insônia pt. 2 )


Certa noite, acreditem se quiser, uma pequena borboleta entrou no meu quarto. Sem marcar hora, protocolar com nenhuma assistente subordinada ou mesmo fazer qualquer menção de se apresentar e dizer à que veio, entrou com alvoroço, debatendo-se entre cortinas e grades de janela.
À primeira vista, entrou pelo simples fato de ter encontrado a janela aberta, como no caso do cão da piada. Porém, quando fui argumentar que ela devia se ter enganado, que não atendíamos aqui borboletas de asas manchadas, bem como de nenhum outro tipo, limitou-se a ignorar meus apelos. No descaso que só as borboletas com manchas brancas conseguem ostentar, ela fingia não me ouvir. Não moveu sequer uma pata quando ameacei entregá-la a cães e gatos. Também pudera, como borboleta bem esclarecida que era, sabia não estar incluída na dieta de nenhum dos dois predadores.
Aplicando dum estratagema mais ofensivo, borrifei na invasora o desodorante mais forte que encontrei, a fim de espantá-lá. Mostrando-se claramente superior, limitou-se a voar para outro canto da parede. Fiz mandinga, acendi velas e canonizei uma Nossa Senhora das Borboletas Deslocadas de Seu Lugar. Nada a abalou.
A essa altura, estava mesmo convencido que borboletas não entram aleatoriamente por janelas. Não nas minhas janelas. E então me preocupei. Tratei de ter certeza de que não se tratava de Átropos, a mariposa mensageira da morte. O Google disse que meus dias só estariam contados se a borboleta suspeita desprendesse um lamentoso canto agudo e tivesse uma caveira humana tatuada nas asas, além de ter quase uns dois palmos de envergadura. Hipóteses descartadas. Providenciei silêncio e atentei para aquelas estáticas asas contrastando com a parede branca. Verifiquei se os mínimos movimentos das antenas não descreviam alguma mensagem sobrenatural. Um “Never More” gesticulado, quem sabe?...
Nada.
Ao cabo de todas minhas tentativas, contrariando apelações e revogações, silenciosamente,como se eu não fosse digno de seu adeus, alçou seu vôo janela afora. Senti uma angústia esquisita.
Naquela noite, não dormi.

( Pablo Vinícius )

sábado, 24 de outubro de 2009

O Moço do Saxofone

Lygia Fagundes Telles

Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá.
Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no
nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente.
E tinha a música do saxofone.
Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.
- O que é isso? - eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que está tocando?
- É o moço do saxofone.
Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China.
- E o quarto dele fica aqui em cima?
James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder.
- Aqui em cima.
Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo meu garfo.
- É uma música desgraçada de triste - fui dizendo.
- A mulher engana ele até com o periquito - respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. - O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece.
- Deitou com você?
- É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar...
Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não agüentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora.
- Parece gente pedindo socorro - eu disse, enchendo meu copo de cerveja. - Será que ele não tem uma música mais alegre?
James encolheu o ombro.
- Chifre dói.
Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher.
-- Mas por quê? - perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James do que o saxofone.
- Uma mulher como ela tem que ter seu quarto - explicou James, tirando um palito do paliteiro. - E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.
- E os outros não reclamam?
- A gente já se acostumou.
Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo.
Um anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.
- Pode me dizer de onde vem tanto anão? - perguntei à madame, e ela riu.
- Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas...
Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim.
- Licença?
Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.
- A que horas é a janta? - perguntei para a madame, enquanto pagava.
- Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito - avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. - O senhor gostou da comida?
Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar.
- Sim senhor - eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal briga.
- O pior é que eu estava de porre, mal pude me defender!
Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio.
- Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?
James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque.
- Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente - resmungou ele, tirando um palito. – Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!
Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem.
- Não topo isso, pomba.
- Isso o quê?
Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação.
- O café é fresco? - perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele.
- Feito agora.
Pela cara vi que era mentira.
- Não é preciso, tomo na esquina.
A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para aporta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o aninho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.
- Sim senhor!
- Sim senhor o quê? - perguntou James.
- Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa.
James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.
- Mulher é o diabo...
Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos.
- Ora, não precisava se incomodar...
Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume.
- Amanhã? - perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. - Às sete, está bem?
- É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe.
Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.
- Desculpe, me enganei de quarto - eu disse, com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar.
O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.
- E na porta adiante - disse ele baixinho, indicando com a cabeça.
Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro.
- Está servido?
- Obrigado, não posso fumar.
Fui recuando de costas. E de repente não agüentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas.
- E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?
- Eu toco saxofone.
Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos.
Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.


In "Antes do Baile Verde", José Olympio Editores - Rio de Janeiro,
1979, e relacionado entre "Os cem melhores contos brasileiros do século", uma seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 233.

A Caçada

Lygia Fagundes Telles

A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus anos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros.
Uma mariposa levantou vôo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas.
- Bonita imagem - disse ele.
A velha tirou um grampo do coque, e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo.
- É um São Francisco.
Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja.
Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.
- Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso... Pena que esteja nesse estado.
O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.
- Parece que hoje está mais nítida...
- Nítida? - repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. - Nítida, como?
- As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela?
A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.
- Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergunta?
- Notei uma diferença.
- Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido acrescentou, tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo: - Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto... Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu.
- Extraordinário...
A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar.
Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo.
- Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar, é capaz de cair em pedaços.
O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?...
Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta.
O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano.
- Parece que hoje tudo está mais próximo - disse o homem em voz baixa. - É como se... Mas não está diferente?
A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los.
- Não vejo diferença nenhuma.
- Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta...
- Que seta? O senhor está vendo alguma seta?
- Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou.
- Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo - lamentou, disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído, com suas chinelas de lã.
Esboçou um gesto distraído: - Fique aí à vontade, vou fazer meu chá.
O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu - conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador?
Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas, detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta... A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco.
Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira... “Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?”
Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos... E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. “Antes do aproveitamento da tapeçaria...” - murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço.
Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?...
Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina.
Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? “Que loucura!... E não estou louco”, concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. “Mas não estou louco.”
Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo.
Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro do travesseiro, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: “Que seta? Não estou vendo nenhuma seta...” Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso, podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. “Sou o caçador?” Mas ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue.
Acordou com o próprio grito que se estendeu dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Ah, aquele calor e aquele frio! Enrolou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tapeçaria? Podia revê-la, tão nítida, tão próxima que, se estendesse a mão, despertaria a, folhagem. Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la!
Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica:
- Hoje o senhor madrugou.
- A senhora deve estar estranhando, mas...
- Já não estranho mais nada, moço. Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho...
“Conheço o caminho” - murmurou, seguindo lívido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore!
Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante.
Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?...
Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado.
Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor!
“Não...” - gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.

Resumo analisado:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/antes_do_baile_verde_livro

In “Antes do baile verde”, José Olympio Editora
– Rio de Janeiro, 1979, foi incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva
Rio de Janeiro, 2000, pág. 265.

Venha ver o pôr-do-Sol

Lygia Fagundes Telles

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalha­das sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estu­dante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sa­patos.
- Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele che­garia aqui em cima.
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância... quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?
- Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando o lenço na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!
- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço, rin­do. - Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? - Abrandara a voz. - E que é isso ai? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mor­tos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo - acrescen­tou, lançando um olhar 'às crianças rodando na sua ciranda.
Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.
- Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o pro­grama?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enter­rada aí. Vamos entrar e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr-do-sol!... Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me ator­menta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino em falta.
- Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu aparta­mento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fecha­dura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... - disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. Aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente aperta­dos. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta: não era nesse instante tão jovem como aparen­tava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. - Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentís­simo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado - prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. - Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não su­porto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.
O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepul­turas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos enegrecidos como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita ao som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava con­duzir como uma criança. As vezes mostrava certa curiosi­dade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente - exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa incerteza. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repenti­namente ficou envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retar­dou o passo.
- Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio glingue-glongue... Apesar de tudo, tenho às vezes sau­dade daquele tempo. Que ano aquele. Palavra que quan­do penso não entendo até hoje como agüentei tanto. Um ano!
- É que você tinha lido A Dama das Camélias, fi­cou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?
- Nenhum - respondeu ela franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades. - Fez um muxoxo. - Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
- Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha bro­tando insólita de dentro da fenda - o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim.
- Deu-lhe um beijo rápido na face. - Chega, Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! Olhou para trás - Nunca andei tanto Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio - lamentou ele empurrando a para a frente Dobrando esta alameda fica o jazigo da minha gente e de lá que se vê o pôr-do-sol.- E tomando a pela cintura. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os do­mingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por ai, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, tão brilhantes.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que... - Fez um gesto. - Enfim, não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devol­veu-o.
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquiria a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre Os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pen­dendo como farrapo. de um manto que alguém colocara sobre os ombros de Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naquelas ruínas.
- Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira.
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpi­nho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério e precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó - murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. - A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se para ver melhor.
- Todas essas gavetas estão cheias?
- Cheias?... - Sorriu. - Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe - prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, em­butido no centro da gaveta.
Ela cruzou OS braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
- Vamos Ricardo, vamos.
- Você está com medo.
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado.
- A priminha Maria Camila. Lembro até do dia em que tirou esse retrato. Foi duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... - Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. - Não, não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impres­sionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbar­rar em nada.
- Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxer­gando...
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à compa­nheira.
- Pegue, dá para ver muito bem... - Afastou-se para o lado. - Repare nos olhos.
- Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... - Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. - Maria Camila, nascida em vinte de maio de mil e oitocen­tos e falecida... - Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. - Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou a olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu menti­roso! Brincadeira mais cretina! - exclamou ela, subindo rapidamente a escada. - Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, ime­diatamente! - ordenou, torcendo o trinco. - Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastan­do devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! - Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadís­simo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
- Boa-noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. - Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! - exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. - Não, não...
Voltado ainda para ela, Ricardo recuou até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa-noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
- Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
- NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remo­tos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brin­cavam de roda.


1958

In “Mistérios”, Nova Fronteira,
4ª Edição, 1981.



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Verde Lagarto Amarelo

Lygia Fagundes Telles

Ele entrou no seu passo macio, sem ruído, não chegava a ser felino: apenas um andar discreto. Polido.
- Rodolfo! Onde está você?... Dormindo? - perguntou quando me viu levantar da poltrona e vestir a camisa. Baixou o tom de voz. - Está sozinho?
Ele sabe muito bem que estou sozinho, ele sabe que sempre estou sozinho.
- Estava lendo. - Dostoievski? Fechei o livro. Nada lhe escapava.
- Queria lembrar uma certa passagem... Só que está quente demais, acho que este é o dia mais quente desde que começou o verão.
Ele deixou a pasta na cadeira e abriu o pacote de uvas, trouxera um pacote de uvas roxas.
- Estavam tão maduras, olha só que beleza - disse tirando
um cacho e balançando-o no ar como um pêndulo. - Prova! Está uma delícia.
Com um gesto casual, atirei meu paletó em cima da mesa, cobrindo o rascunho de um conto que começara naquela manhã. - Já é tempo de uvas? - perguntei colhendo um bago. Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa, sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto.
Trouxe também uma coisa... Mostro depois.
Encarei-o. Quando ele sorria ficava menino outra vez. Seus olhos tinham o mesmo brilho úmido das uvas.
Que coisa?
Mas se eu já disse que é surpresa! Mostro depois.
Não insisti. Conhecia de sobra aquela antiga expressão com que vinha me anunciar que tinha algo escondido no bolso ou debaixo do travesseiro. Acabava sempre por me oferecer seu tesouro:
a maçã, o cigarro, a revistinha pornográfica, o pacote de suspiros, mas antes ficava algum tempo me rondando com esse ar de secreto deslumbramento.
Vou fazer um café - anunciei.
Só se for para você, tomei há pouco na esquina.
Era mentira. O bar da esquina era imundo e para ele o café fazia parte de um ritual nobre, limpo. Dizia isso para me poupar, estava sempre querendo me poupar.
Na esquina?
Quando comprei as uvas...
Meu irmão. O cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua. E aquela cor nas pupilas.
Mamãe achava que seus olhos eram cor-de-violeta. Cor-de-violeta?
Foi o que ela disse à tia Débora, meu filho Eduardo tem os olhos cor-de-violeta...
Ele tirou o paletó. Afrouxou a gravata. Como é que são olhos cor-de-violeta? Cor-de-violeta - eu respondi abrindo o fogareiro.
Ele riu apalpando os bolsos do paletó até encontrar o cigarro. Concentrou-se.
Meu Deus, tinha um canteiro de violetas no jardim de casa... Não eram violetas, Rodolfo?
Eram violetas.
E uma parreira, lembra? Nunca conseguimos um cacho maduro daquela parreira - disse amarfanhando com um gesto afetuoso o papel das uvas. - Até hoje não sei se eram doces. Eram doces?
Também não sei, você não esperava amadurecer. Vagarosamente ele tirou as abotoaduras e foi dobrando a manga da camisa com aquela arte toda especial que tinha de dobrá-la sem fazer rugas, na exata medida do punho. Os braços musculosos de nadador. Os pêlos dourados. Fiquei a olhar as abotoaduras que tinham sido do meu pai.
A Ofélia quer que você almoce domingo com a gente. Ela releu seu romance e ficou no maior entusiasmo, gostou ainda mais do que da primeira vez, você precisa ver com que interesse analisou as personagens, discutiu os detalhes.
Domingo já tenho um compromisso - eu disse enchendo a chaleira de água.
E sábado? Não me diga que sábado você também não pode...
Aproximei-me da janela. O sopro do vento era ardente como se a casa estivesse no meio de um braseiro. Respirei de boca aberta agora que ele não me via, agora que eu podia amarfanhar
a cara como ele amarfanhara o papel. Esfreguei nela o lenço, até quando, até quando?!... E me trazia a infância, será que ele não vê que para mim foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê? Por que tem de vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar nada, não quero saber de nada! Fecho os olhos. Está amanhecendo e o sol está longe, tem brisa na campina, cascata, orvalho gelado deslizando na corola, chuva fina no meu cabelo, a montanha e o vento, todos os ventos soprando. Os ventos. Vazio. Imobilidade e vazio. Se eu ficar assim imóvel, respirando leve, sem ódio, sem amor, se eu ficar assim um instante, sem pensamento, sem corpo...
- E sábado? Ela quer fazer aquela torta de nozes que você adora.
- Cortei o açúcar, Eduardo.
- Mas saia um pouco do regime, você emagreceu, não emagreceu?
- Ao contrário, engordei. Não está vendo? Estou enorme. - Não é possível! Assim de costas você me pareceu tão mais magro, palavra que eu já ia perguntar quantos quilos você perdeu. Agora a camisa se colava ao meu corpo. Limpei as mãos viscosas no peitoril da janela e abri os olhos que ardiam, o sal do suor é mais violento do que o sal das lágrimas. “Esse menino transpira tanto, meus céus! Acaba de vestir roupa limpa e já começa a transpirar, nem parece que tomou banho. Tão desagradável!...” Minha mãe não usava a palavra suor que era forte demais para seu vocabulário, ela gostava das belas palavras, das belas imagens. Delicadamente falava em transpiração com aquela elegância em vestir as palavras como nos vestia. Com a diferença que Eduardo se conservava limpo como se estivesse numa redoma, as mãos sem poeira, a pele fresca. Podia rolar na terra e não se conspurcava, nada chegava a sujá-lo realmente porque mesmo através da sujeira podia se ver que estava intacto. Eu não. Com a maior facilidade me corrompia lustroso e gordo, o suor a escorrer pelo pescoço, pelos sovacos, pelo meio das pernas. Não queria suar, não queria, mas o suor medonho não parava de escorrer manchando a camisa de amarelo com uma borda esverdinhada, suor de bicho venenoso, traiçoeiro, malsão. Enxugava depressa a testa, o pescoço, tentava num último esforço salvar ao menos a camisa. Mas a camisa já era uma pele enrugada aderindo à minha com meu cheiro, com a minha cor. Era menino ainda mas houve um dia em que quis morrer para não transpirar mais.
Na noite passada sonhei com nossa antiga casa - disse ele aproximando-se do fogareiro. Destapou a chaleira, espiou dentro. Tapou-a de novo. - Não me lembro bem mas parece que a casa estava abandonada, foi um sonho estranho.
Também sonhei com a casa mas já faz tempo - eu disse. Ele aproximou-se. Esquivei-me em direção ao armário. Tirei as xícaras.
Mamãe apareceu no seu sonho? - perguntou ele. Apareceu. O pai tocava piano e mamãe... Rodopiávamos vertiginosos numa valsa e eu era magro, tão magro que meus pés mal roçavam o chão, senti mesmo que levantavam vôo e eu ria enlaçando-a em volta do lustre quando de repente o suor começou a escorrer, escorrer.
Ela estava viva?
Seu vestido branco se empapava do meu suor amarelo-verde mas ela continuava dançando, desligada, remota.
Estava viva, Rodolfo?
- Não, era uma valsa póstuma - eu disse colocando na frente dele a xícara perfeita. Reservei para mim a que estava rachada. - Está reconhecendo essa xícara?
Ele tomou-a pela asa. Examinou-a. Sua fisionomia iluminou-se com a graça de um vitral varado pelo sol.
Ah!... as xicrinhas japonesas. Sobraram muitas ainda? O aparelho de chá, o faqueiro, os cristais e os tapetes tinham ficado com ele. Também os lençóis bordados, obriguei-o a aceitar tudo. Ele recusava, chegou a se exaltar, “não quero, não é justo, não quero! Ou você fica com a metade ou então não aceito nada! Amanhã você pode se casar também...” Nunca, respondi. Moro só, gosto da casa sem nenhum enfeite, quanto mais simples melhor. Ele parecia não ouvir uma só palavra enquanto ia amontoando os objetos em duas porções, “olha, isto você leva que estava no seu quarto...” Tive de recorrer à violência. Se você teimar em me deixar essas coisas, assim que você virar as costas jogo tudo na rua! Cheguei a agarrar uma jarra, no meio da rua! Ele empalideceu, os lábios trêmulos. “Você jamais faria isso, Rodolfo. Cale-se, por favor, que você não sabe o que está dizendo.” Passei as mãos na cara ardente. E a voz da minha mãe vindo das cinzas: “Rodolfo, por que você há de entristecer seu irmão? Não vê que ele está sofrendo? Por que você faz assim?!” Abracei-o. Ouça Eduardo, sou um tipo mesmo esquisito, você está farto de saber que sou meio louco. Não quero mesmo nada, não sei explicar mas não quero, está me entendendo? Leve tudo à Ofélia, presente meu. Não posso dar a vocês um presente de casamento? Para não dizer que não fico com nada, olha... está aqui, pronto, fico com essas xícaras!
Fina como casca de ovo - disse ele batendo com a unha na porcelana. - Ficavam na prateleira do armário rosado, lembra? Esse armário está na nossa saleta.
Despejei água fervente na caneca. O pó de café foi se diluindo resistente, difícil. Minha mãe. Depois, Ofélia. Por que não haveria de ficar também com os lençóis?
- E Ofélia? Para quando o filho?
Ele apanhou a pilha de jornais velhos que estavam no chão, ajeitou-a cuidadosamente e esboçou um gesto de procura, devia estar sentindo falta de um lugar certo para serem guardados os
jornais já lidos. Teve uma expressão de resignado bom humor, mas então a desordem do apartamento comportava um móvel assim supérfluo? Enfiou a pilha na prateleira mais vazia da estante e voltou-se para mim. Ficou seguindo-me com o olhar enquanto eu procurava no armário debaixo da pia a lata onde devia estar o açúcar. Uma barata fugiu atarantada, escondendo-se debaixo de uma tampa de panela e logo uma outra maior se despencou não sei de onde e tentou também o mesmo esconderijo. Mas a fresta era estreita demais e ela mal conseguiu esconder a cabeça, ah, o mesmo humano desespero na procura de um abrigo. Abri a lata de açúcar e esperei que ele dissesse que havia um novo sistema de acabar com as baratas, era facílimo, bastava chamar pelo telefone e já aparecia o homem de farda cáqui e bomba em punho e num segundo pulverizava tudo. Tinha em casa o número do telefone, podia me dar, nem baratas nem formigas.
No próximo mês, parece. Está tão lépida que nem acredito que esteja nas vésperas - disse ele me contornando pelas costas. Não perdia um só dos meus movimentos. - E adivinha agora quem vai ser o padrinho.
Que padrinho?
- Do meu filho, ora!
Não tenho a menor idéia. Você.
Minha mão tremia como se ao invés de açúcar eu estivesse mergulhando a colher em arsênico. Senti-me infinitamente mais gordo. Mais vil. Tive vontade de vomitar.
- Não faz sentido, Eduardo. Não acredito em Deus, não acredito em nada.
E daí? - perguntou ele, servindo-se de mais açúcar. Atraiu-me quase num abraço. - Fique tranqüilo, eu acredito por nós dois. Tomei de um só trago o café amargo. Uma gota de suor pingou no pires. Passei a mão pelo queixo. Não pudera ser pai, seria padrinho. Não era ser amável? Um casal amabilíssimo. A pretexto de aquecer o café, fiquei de costas e então esfreguei furtivamente o pano de prato na cara.
Era essa a surpresa? - perguntei e ele olhou-me com inocência. Repeti a pergunta: - A surpresa! Quando chegou você disse que...
Ah!... não, não! Não é isso não - exclamou e riu apertando os olhos que riam também com uma ponta de malícia. - A surpresa é outra. Se der certo, Rodolfo, se der certo!... Enfim, você é quem vai decidir. Ponho nas suas mãos.
Era exatamente a expressão da minha mãe quando vinha me preparar para uma boa notícia. Rondava, rondava e ficava observando-me reticente, saboreando o segredo até o momento em que não resistia mais e contava. A condição era invariável: “Mas você vai me prometer que não vai comer nenhum doce durante uma semana, só uma semana!”
E se ele fosse morar longe? Podia se mudar de cidade, viajar. Mas não. Precisava ficar por perto, sempre em redor, olhando-me. Desde pequeno, no berço já me olhava assim. Não precisaria me odiar, eu nem pediria tanto, bastava me ignorar, se ao menos me ignorasse. Era bonito, inteligente, amado, conseguiu sempre fazer tudo muito melhor do que eu, melhor do que os outros, em suas mãos as menores coisas adquiriam outra importância, como que se renovavam. E então? Natural que esquecesse o irmão obeso, malvestido, malcheiroso. Escritor, sim, mas nem aquele tipo de escritor de sucesso, convidado para festas, dando entrevistas na televisão: um escritor de cabeça baixa e calado, abrindo com as mãos em garra seu caminho. Se ao menos ele... mas não, claro que não, desde menino eu já estava condenado ao seu fraterno amor. Às vezes, escondia-me no porão, corria para o quintal, subia na figueira, ficava imóvel, um lagarto no vão do muro, pronto, agora não vai me achar. Mas ele abria portas, vasculhava armários, abria a folhagem e ficava rindo por entre lágrimas. Engatinhava ainda quando saía à minha procura, farejando meu rastro. - Rodolfo, não faça seu irmãozinho chorar, não quero que ele fique triste!” Para que ele não ficasse triste, só eu soube que ela ia morrer. “Você já é grande, você deve saber a verdade
disse meu pai olhando reto nos meus olhos. - É que sua mãe não tem nem...
Não completou a frase. Voltou-se para a parede e ali ficou de braços cruzados, os ombros curvos. Só eu e você sabemos. Ela desconfia mas de jeito nenhum quer que seu irmãozinho saiba, está entendendo?” Eu entendia. Na, sua última festa de aniversário ficamos reunidos em redor da cama. “Laura é como o rei daquela história - disse meu pai, dando-lhe de beber um gole de vinho. - Mas em vez de transformar tudo em ouro, quando toca nas coisas, transforma tudo em beleza.” Com os olhos cozidos de tanto chorar, ajoelhei-me e fingindo arrumar-lhe o travesseiro, pousei a cabeça ao alcance da sua mão, ah, se me tocas-se com um pouco de amor. Mas ela só via o broche, um caco de vidro que Eduardo achou no quintal e enrolou em fiozinhos de arame formando um casulo, “mamãezinha querida, eu que fiz para você!” Ela beijou o broche. E o arame ficou sendo prata e o caco de garrafa ficou sendo esmeralda. Foi o broche que lhe fechou a gola do vestido. Quando me despedi, apertei sua mão gelada contra minha boca, e eu, mamãe, e eu?...
Esqueci de oferecer biscoitos, olha aí, você gosta - eu disse tirando a lata do armário.
- É sua empregada quem faz?
- Minha empregada só vem uma vez por semana, comprei na rua - acrescentei e lancei-lhe um olhar. Que surpresa era essa agora? O que é que eu devia decidir? Eu devia decidir, ele disse. Mas o quê? Interpelei-o: - Que é que você está escondendo, Eduardo? Não vai me dizer?
Ele pareceu não ter ouvido uma só palavra. Quebrou a cinza do cigarro no cinzeiro, soprou o pouco que lhe caiu na calça e inclinou-se para os biscoitos.
Ah!... rosquinhas. Ofélia aprendeu a fazer sequilhos no caderno de receitas da mamãe mas estão longe de ser como aqueles. Ele comia sequilhos quando entrei no quarto. Ao lado, a caneca de chocolate fumegante. Eu tinha tomado chá. Chá. Dei uma volta em redor dele. O Júlio já está na esquina esperando, avisei. Veio me dizer que tem de ser agora. Ele então se levantou, calçou a sandália, tirou o relógio de pulso e a correntinha do pescoço. Dirigiu-se para a porta com uma firmeza que me espantou. Vi-o ensangüentado, a roupa em tiras. Você é menor, Eduardo, você vai apanhar feito cachorro! Ele abriu os braços. “E daí? Quer que a turma me chame de covarde?” Sentei-me na cadeira onde ele estivera e ali fiquei encolhido, tomando o seu chocolate e comendo sequilhos. Tinha a boca cheia quando ouvi a voz da minha mãe chamando: “Rodolfo, Rodolfo!” Agora ela o carregava em prantos, tentando arrancar-lhe o canivete enterrado no peito até o cabo.
Procurei seu romance em duas livrarias e não encontrei, queria dar a uns amigos. Está esgotado, Rodolfo? O vendedor disse que vende demais.
Exagero. Talvez se esgote mas não já.
A boca cheia de sequilhos e o suor escorrendo por todos os poros, escorrendo. A voz da minha mãe insistiu enérgica: “Rodolfo, você está me ouvindo? Onde está o Eduardo?!” Entrei no quarto dela. Estava deitada, bordando. Assim que me viu, sua fisionomia se confrangeu. Deixou o bordado e ficou balançando a cabeça, - “Mas filho, comendo de novo?! Quer engordar mais ainda? - Suspirou, dolorida. - Onde está seu irmão?” Encolhi os ombros, não sei, não sou pajem dele. Ela ficou me olhando. “Essa é maneira de me responder, Rodolfo? Hein?!...” Desci a escada comendo o resto dos sequilhos que escondi nos bolsos. O silêncio seguiu-me descendo a escada degrau por degrau, colado ao chão, viscoso, pesado. Parei de mastigar. E de repente me precipitei pela rua afora, eu o queria vivo, o canivete não! Encontrei-o sentado na sarjeta, a camisa rasgada, um arranhão fundo na testa. Sorriu palidamente. Ofegava. Júlio tinha acabado de fugir. Cravei o olhar no seu peito. Mas ele não usou o canivete? perguntei. Apoiando-se na árvore, levantou-se com dificuldade, tinha torcido o pé. “Que canivete?...” Baixando a cabeça que latejava, inclinei-me até o chão. Você não pode andar, eu disse, apoiando as mãos nos joelhos. Vamos, monta em mim. Ele obedeceu. Estranhei; era tão magro, não era? Mas pesava como chumbo. O sol batia em cheio em nós enquanto o vento levantava as tiras da sua camisa rasgada. Vi nossa sombra no muro, as tiras se abrindo como asas. Enlaçou-me mais fortemente, encostou o queixo no meu ombro e teve um breve soluço, “que bom que você veio me buscar...”
Seu novo livro? - perguntou ele na maior excitação. Encontrara o rascunho em cima da mesa. - Posso ler, Rodolfo? Posso?
Tirei-lhe as folhas das mãos e fechei-as na gaveta. Era o que me restara: escrever. Será possível que ele também?...
Não, não é possível, Eduardo - eu disse, tentando abrandar a voz. - Está tudo muito no início, trabalho mal no calor - acrescentei meio distraidamente. Olhei para sua pasta na cadeira e adivinhei a surpresa. Senti meu coração se fechar como uma concha. A dor era quase física. Olhei para ele. - Você escreveu um romance. É isso? Os originais estão na pasta... É isso? Ele então abriu a pasta.


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Apenas um Saxofone

Lygia Fagundes Telles

Anoiteceu e faz frio. ”Merde! voilá l’hiver”, é o verso que, segundo Xenofonte, cabe dizer agora. Aprendi com ele que palavrão em boca de mulher é como lesma em corola de rosa. Sou mulher. Logo, só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se possível, fazendo parte de um poema. Então as pessoas em redor poderão ver como sou autêntica e ao mesmo tempo erudita. Uma puta erudita, tão erudita que se quisesse podia dizer as piores bandalheiras em grego antigo, o Xenofonte sabe grego antigo. E a lesma ficaria irreconhecível como convém a uma lesma numa corola de quarenta e quatro anos e cinco meses, meu Jesus. Foi rápido não? Rápido. Mais seis anos e terei meio século, tenho pensado muito nisso e sinto o próprio frio secular que vem do assoalho e se infiltra no tapete. Meu tapete é persa, todos meus tapetes são persas, mas não sei o que fazem esses bastardos que não impedem que o frio se instale na sala. Fazia menos frio no nosso quarto, com as paredes forradas de estopa e o tapetinho de juta no chão, ele mesmo forrou as paredes e pregou retratos de antepassados e gravuras da Virgem de Fra Angelico, tinha paixão por Fra Angelico.
Onde agora? Onde? Podia mandar acender a lareira, mas despedi o copeiro, a arrumadeira, o cozinheiro – despedi um por um, me deu um desespero e mandei a corja toda embora, rua, rua! Fiquei só. Há lenha em algum lugar da casa, mas não é só riscar o fósforo e tocar na lenha como se vê no cinema, o japonês ficava horas aí mexendo, soprando até o fogo acender. E eu mal tenho forças de acender o cigarro.
Estou aqui sentada faz não sei quanto tempo. Desliguei o telefone, me enrolei na manta, trouxe a garrafa de uísque e estou aqui bebendo bem devagarinho para não ficar de porre, hoje não, hoje quero ficar lúcida, vendo uma coisa, vendo outra. E tem coisa a beça para ver tanto por dentro como por fora, ainda mais por fora, uma porrada de coisas que comprei no mundo inteiro, coisas que nem sabia que tinha e que só vejo agora, justo agora que está escuro. É que fomos escurecendo juntas, a sala e eu. Uma sala de uma burrice atroz, afetada, pretensiosa. E sobretudo rica, exorbitando de riqueza, abri um saco de ouro para o decorador se esbaldar nele. E se esbaldou mesmo, o veado. Chamava-se Renê e chegava logo cedinho com suas telas, veludos, musselinas, brocados, “trouxe hoje para o sofá um pano que veio do Afeganistão, completamente divino! Di-vino!” Nem o pano era do Afeganistão nem ele era tão veado assim, tudo mistificação, cálculo. Surpreendi-o certa vez sozinho, fumando perto da janela, a expressão fatigada e triste de um ator que já está farto de representar. Assustou-se quando me viu, foi como se o tivesse apanhado em flagrante roubando um talher de prata. Então retomou o gênero borbulhante e saiu se rebolando todo para me mostrar o oratório, um oratório falsamente antigo, tudo feito há três dias mas com furinhos na madeira imitando caruncho de três séculos. “Este anjo só pode ser do Aleijadinho, veja as bochechas! E os olhos de cantos caídos, um nadinha estrábicos...” Eu concordava no mesmo tom histérico, embora soubesse perfeitamente que o Aleijadinho teria que ter mais dez braços para conseguir fazer tanto anjo assim, a casa de Madô também tem milhares deles, todos autênticos, “um nadinha estrábicos”, repetiu ela com voz em falsete de Renê. Bossa colonial de grande luxo. E eu sabendo que estava sendo enganada e não me importando, ao contrário, sentindo um agudo prazer em comer gato por lebre. Li ontem que já estão comendo ratos em Saigon e li ainda que já não há mais borboletas por lá, nunca mais haverá a menor borboleta... Desatei antão a chorar feito louca, não sei se por causa das borboletas ou dos ratos. Acho que nunca bebi tanto como ultimamente e quando bebo assim fico sentimental, choro à toa. “Você precisa se cuidar”, Renê disse na noite em que ficamos de fogo, só agora penso nisso que ele me disse. Por que devo me cuidar, por quê? Contratei-o para fazer em seguida a decoração da casa de campo, “tenho os móveis ideais para essa sua casa”, ele avisou e eu comprei os móveis ideais, comprei tudo, compraria até a peruca de Maria Antonieta com todos os seus labirintos feitos pelas traças e mais a poeira pela qual não me cobraria nada, simples contribuição do tempo, é claro. È claro.
Onde agora? Às vezes eu fechava os olhos e os sons eram como voz humana me chamando, me envolvendo, Luisiana, Luisiana! Que sons eram aqueles? Como podiam parecer voz de gente e serem ao mesmo tempo tão mais poderosos, tão mais puros. E despretensiosos como ondas se renovando no mar, aparentemente iguais, só aparentemente.” Este é o meu instrumento”, disse ele deslizando a mão pelo saxofone. Com a outra mão em concha, cobriu meu peito: “E esta é a minha música”.
Onde, onde? Olho meu retrato em cima da lareira. “Na lareira tem que ficar seu retrato”, determinou Renê num tom autoritário, às vezes ele era autoritário. Apresentou-me seu namorado, pintor, pelo menos me fazia crer que era seu namorado porque agora já não sei mais nada. E o efebo de caracóis na testa me pintou toda de branco, uma Dama das Camélias voltando do campo, o vestido comprido, o pescoço comprido, tudo assim esgalgado e iluminado como se eu tivesse o próprio anjo tocheiro da escada aceso dentro de mim. Tudo já escureceu na sala menos o vestido do retrato, lá está ele diáfano como a mortalha de um ectoplasma pairando suavíssimo no ar. Um ectoplasma muito mais jovem do que eu, sem dúvida o puxa-saco do pintor era suficientemente esperto para imaginar como eu devia ser aos vinte anos. “Você no retrato parece um pouco diferente”, concedeu ele, “mas o caso é que não estou pintando só seu rosto”, acrescentou muito sutil. Queria dizer com isso que estava pintando minha alma. Concordei na hora, fiquei até comovida quando me vi de cabeleira elétrica e olhos vidrados. “Meu nome é Luisiana”, me diz agora o ectoplasma. “Há muitos anos mandei embora o meu amado e desde então morri”.
Onde?... Tenho um iate, tenho um casaco de vison prateado, tenho uma coroa de diamantes, tenho um rubi que já esteve incrustado no umbigo de um xá famosíssimo, até há pouco eu sabia o nome desse xá. Tenho um velho que me dá dinheiro, tenho um jovem que me dá gozo e ainda por cima tenho um sábio que me dá aulas sobre doutrinas filosóficas com um interesse tão platônico que logo na segunda aula já se deitou comigo, vinha tão humilde, tão miserável com seu terno de luto empoeirado e suas botinas de viúvo que fechei os olhos e me deitei, vem Xenofonte, vem. “Não sou Xenofonte, não me chame de Xenofonte”, ele me implorou e seu hálito tinha o cheiro recente de pastilhas Valda, era Xenofonte, nunca houve ninguém tão Xenofonte quanto ele. Como nunca houve uma Luisiana tão Luisiana como eu, ninguém sabe desse nome, ninguém, nem o cáften do meu pai que nem esperou eu nascer para ver como eu era, nem a coitadinha da minha mãe que não viveu nem para me registrar. Nasci naquela noite na praia e naquela noite recebi um nome que durou enquanto durou o amor. Outra madrugada, quando enchi a cara e fui falar com meu advogado para não pôr no meu túmulo outro nome senão esse, ele deu risadinha execrável, “Luisiana? Mas por que Luisiana? De onde você tirou esse nome?”.
Controlou-se para não me chacoalhar por tê-lo acordado aquela hora, vestiu-se e muito polidamente me trouxe para casa,”como queira, minha querida, você manda!”
E deu sua risadinha, enfim, uma puta bêbada mas rica tem o direito de botar no túmulo o nome que bem entender, foi o que provavelmente pensou. Mas já não me importo com o que ele pensa, ele e mais a cambada toda que me cerca, opinião alheia é este tapete, este lustre, aquele retrato. Opinião alheia é esta casa com os santos varados por mil cargas.
Mas antes eu me importava e como. Por causa dessa opinião tenho hoje um piano de cauda, tenho um gato siamês com uma argola na orelha, tenho chácara com piscina e papel higiênico com florinhas douradas que o velho trouxe dos Estados Unidos junto com o estojo plástico que toca uma musiquinha enquanto a gente vai desenrolando o papel, “oh! My last rose of summer!...”. Quando me deu os rolos, deu também os potes de caviar, “é preciso dourar a pílula”, disse rindo com sua grossura habitual, é um grosso, senão cuspisse dólar eu já teria mandado ele para aquela parte com seus tacos de golfe e cuecas perfumadas com lavanda. Tenho sapato com fivela de diamante e um aquário com uma floresta de coral no fundo, quando o velho me deu a pérola, achou originalíssimo esconde-la no fundo do aquário e me mandar procurar: “Está ficando quente, mais quente. Não, agora esfriou!...” E eu me fazia menininha e ria quando minha vontade mesmo era dizer-lhe que enfiasse a pérola no rabo e me deixasse em paz, me deixasse em paz! Ele, o jovem ardente com todos seus ardores, Xenofonte com seu hálito de hortelã – enxotar todos como fiz com a criadagem, todos uns sacanas que mijam no meu leite e se torcem de rir quando fico para cair de bêbada.
Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um diamante do tamanho de um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate – trocaria tudo, anéis e dedos, para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem seria preciso vê-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que ele estava vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone.
Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude, tudo o mais é besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer duas mil plásticas e não resolve, no fundo é a mesma bosta, só existe a juventude. Ele era a minha juventude, só que naquele tempo eu não sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode mesmo saber, fica tudo natural como o dia que sucede à noite, com o Sol, a Lua, eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa eu respirava tão bem...
Ele era a minha juventude, ele e seu saxofone que luzia como ouro. Seus sapatos eram sujos, a camisa despencada, a cabeleira um ninho, mas o saxofone estava sempre meticulosamente limpo. Tinha também mania com os dentes, que eram de uma brancura que nunca vi igual, quando ele ria eu parava de rir para ficar olhando. Trazia a escova de dentes no bolso e mais fralda para limpar o saxofone, achou num táxi uma caixa com uma dúzia de fraldas Johnson e desde então passou a usa-las para todos os fins: era lenço, a toalha de rosto, o guardanapo, a toalha de mesa e o pano de limpar o saxofone. Foi também a bandeira de paz que usou na nossa briga mais séria, quando quis que tivéssemos um filho. Tinha paixão por tanta coisa...
A primeira vez que nos amamos foi na praia. O céu palpitava de estrelas e fazia calor. Então fomos rolando e rindo até as primeiras ondas que ferviam na areia e ali ficamos nus e abraçados na água morna como a de uma bacia. Preocupou-se quando lhe disse que não fora sequer batizada. Colheu a água com as mãos e despejou na minha cabeça: “Eu te batizo, Luisiana, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém”. Pensei que ele estivesse brincando mas nunca o vi tão grave. “Agora você se chama Luisiana”, disse me beijando a face. Perguntei-lhe se acreditava em Deus, “Tenho paixão por Deus”, sussurrou deitando-se de costas, as mãos entrelaçadas debaixo da nuca, o olhar no céu: “O que me deixa perplexo é um céu assim como este”. Quando nos levantamos correu até a duna onde estavam nossas roupas, tirou a fralda que cobria o saxofone e trouxe-a delicadamente nas pontas dos dedos para me enxugar com ela. Aí pegou o saxofone, sentou-se encaracolado e nu como um fauno menino e começou a improvisar bem baixinho, formando com o fervilhar das ondas uma melodia terna e cálida. Os sons cresciam tremidos como bolhas de sabão, olha esta que grande! Olha esta agora mais redonda...ah, estourou... Se você me ama você é capaz de ficar assim nu naquela duna e tocar, tocar o mais alto que puder até que venha a polícia? Eu perguntei. Ele me olhou sem pestanejar e foi correndo em direção à duna e eu corria atrás e gritava e ria, ria porque ele já tinha começado a tocar a plenos pulmões.
Minha companheira do curso de dança casou-se com o baterista de um conjunto que tocava numa boate, houve festa. Foi lá que o conheci. Em meio da maior algazarra do mundo a mãe da noiva se trancou no quarto chorando, “veja em que meio minha filha foi cair! Só vagabundos, só cafajestes!...” Deitei-a na cama e fui buscar um copo de água com açúcar mas na minha ausência os convidados descobriram o quarto e quando voltei os casais já tinham transbordado até ali, atracando-se em almofadas pelo chão. Pulei gente e sentei-me na cama. A mulher chorava, chorava até que aos poucos o choro foi esmorecendo e de repente parou. Eu também tinha parado de falar e ficamos as duas muito quietas, ouvindo a música de um moço que eu ainda não tinha visto. Ele estava sentado na penumbra, tocando saxofone. A melodia era mansa mas ao mesmo tempo tão eloqüente que fiquei imersa num sortilégio. Nunca tinha ouvido nada parecido, nunca ninguém tinha tocado um instrumento assim. Tudo o que tinha querido dizer à mulher e não conseguira, ele dizia agora com o saxofone: que ela não chorasse mais, tudo estava bem, tudo estava certo quando existia o amor. Tinha Deus, ela não acreditava em Deus? – perguntava o saxofone. E tinha a infância, aqueles sons brilhantes falavam agora da infância, olha aí a infância!... A mulher parou de chorar e agora era eu que chorava. Em redor, os casais ouviam num silêncio fervoroso e suas carícias foram ficando mais profundas, mais verdadeiras, porque a melodia também falava do sexo vivo e casto como um fruto que amadurece ao sol.
Onde? Onde?... Levou-me para o seu apartamento, ocupava um minúsculo apartamento no décimo andar de um prédio velhíssimo, toda a sua fortuna era aquele quarto com um banheiro mínimo. E o saxofone. Contou-me que recebera o apartamento como herança de uma tia cartomante. Depois, num outro dia disse que o ganhara numa aposta e quando outro dia ainda começou a contar uma terceira história, interpelei-o e ele começou a rir, “é preciso variar as histórias, Luisiana, o divertido é improvisar que para isso temos imaginação! É triste quando um caso fica a vida inteira igual...” E improvisava o tempo todo e sua música era sempre ágil, rica, tão cheia de invenções que chegava a me afligir, você vai compondo e vai perdendo tudo, você tem que tomar nota, tem que escrever o que compõe! Ele sorria.
“Sou um autodidata, Luisiana, não sei ler nem escrever música e nem é preciso para ser um sax-tenor, sabe o que é um sax-tenor? É o que eu sou.” Tocava num conjunto que tinha contrato com uma boate e sua única ambição era ter um dia um conjunto próprio. E ter também uma vitrola de boa qualidade para ouvir Ravel e Debussy.
Nossa vida foi tão maravilhosamente livre! E tão cheia de amor, como nos amamos e rimos e choramos de amor naquele décimo andar, cercados por gravuras de Fra Angelico e retratos dos seus antepassados. “Não são meus parentes, achei tudo isso no baú de um porão”, confessou-me certa vez. Apontei para o mais antigo dos retratos, tão antigo que da mulher só restava a cabeleira escura. E as sobrancelhas.
Esta você também achou no baú? Perguntei. Ele riu e até hoje fiquei sem saber se era verdade ou não. Se você me ama mesmo, eu disse, suba então naquela mesa e grite com todas as forças, vocês são todos uns cornudos, vocês são todos uns cornudos! E depois desça da mesa e saia mas sem correr. Ele me deu o saxofone para segurar enquanto eu fugia rindo, não, não, eu estava brincando, isso não! Já na esquina ouvi seus gritos em pleno bar, “cornudos, todos cornudos!” Alcançou-me em meio da gente estupefata, “Luisiana, Luisiana, não me negue Luisiana!” Outra noite – saíamos de um teatro – não resisti e perguntei-lhe se era capaz de cantar ali no saguão um trecho de ópera, vamos, se você me ama mesmo cante aqui na escada u trecho do Rigoleto!
Se você me ama mesmo, me leva agora a um restaurante, me compre já aqueles brincos, me compre imediatamente um vestido novo! Ele agora tocava em mais lugares porque eu estava ficando exigente, se você me ama mesmo, mesmo, mesmo...
Saía às sete da noite com o saxofone debaixo do braço e só voltava de manhãzinha.
Então limpava o bocal do instrumento, lustrava o metal com a fralda e ficava dedilhando distraidamente, sem nenhum cansaço, sem nenhum desgaste, “Luisiana, você é a minha música e eu não posso viver sem música”, dizia abocanhando o bocal do saxofone com o mesmo fervor com que abocanhava meu peito. Comecei a ficar irritadiça, inquieta, era como se tivesse medo de assumir a responsabilidade de tamanho amor. Queria vê-lo mais independente, mais ambicioso. Você não tem ambição? Não usa mais artista sem ambição, que futuro você pode ter assim? Era sempre o saxofone quem me respondia e a argumentação era tão definitiva que me envergonhava e me sentia miserável por estar exigindo mais. Contudo, exigia. Pensei em abandoná-lo mas não tive forças, não tive, preferi que nosso amor apodrecesse, que ficasse tão insuportável que quando ele fosse embora saísse cheio de nojo, sem olhar para trás.
Onde agora? Onde? Tenho uma casa de campo, tenho um diamante do tamanho de um ovo de pomba... Eu pintava os olhos diante do espelho, tinha um compromisso, vivia cheia de compromissos, ia a uma boate com um banqueiro. Enrodilhado na cama, ele tocava em surdina. Meus olhos foram ficando cheios de lágrimas. Enxuguei-os na fralda do saxofone e fiquei olhando para minha boca que achei particularmente fina. Se você me ama mesmo, eu disse, se você me ama mesmo então saia e se mate imediatamente.

Natal Na Barca

Lygia Fagundes Telles

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.
O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.
Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.
Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.
A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.
— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.
— Mas de manhã é quente.
Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.
— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.
— Quente?
— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?
Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:
— Mas a senhora mora aqui perto?
— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...
A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.
— Seu filho?
— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.
— É o caçula?
Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.
— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.
Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
— E esse? Que idade tem?
— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.
Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.
— Seu marido está à sua espera?
— Meu marido me abandonou.
Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.
— Há muito tempo? Que seu marido...
— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.
Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.
— A senhora é conformada.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
— Deus — repeti vagamente.
— A senhora não acredita em Deus?
— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...
Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:
— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.
Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim:
— Estamos chegando — anunciou.
Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:
— Chegamos!... Ei! chegamos!
Aproximei-me evitando encará-la.
— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão.
Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.
— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.
— Acordou?!
Ela sorriu:
— Veja...
Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.
— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.
Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.
Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

do livro “Para gostar de ler – Volume 9 – Contos”, Editora Ática – São Paulo, 1984, pág. 67

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Insônia


Existe um abismo entre aqueles que conseguem dormir e os que não o conseguem.

É uma das grandes

divisões da raça humana.


(Iris Murdoch

Nuns and Soldiers )



Para quem não tem costume de dormir bem, como eu, pesadelos são frequentes. A noite chega a ser, inclusive, pior na ausência deles. Nas raras madrugadas em que não tenho pesadelo, tenho mais raramente ainda sonhos ditos normais. Exceções à parte, noite sem pesadelo é noite de experiência de morte. É ausência de si e de vida, um vazio sensorial insuportável, não fosse isto paradoxo. Afinal o que não se sente pode ser suportado. Ressalto porém que suportar é muito diferente de apreciar, visto que no primeiro caso não há opção.

Acho que sempre preferi um bom livro à uma boa pessoa, no aspecto companhia mais ou menos social. Não sou lá de muita prosa, gosto antes de ouvir histórias e, de preferência, uma história que me leve pra longe da minha própria história, sem tratar-se -necessariamente- de uma fantasia.

Tempos de férias curtas (uma semana de um feriado prolongado) e eu já sabia que significavam noites em claro sem o compromisso de acordar cedo no dia seguinte. Aliás, sem o compromisso de acordar. Se o despertar seria difícil, mais ainda seria o adormecer. Já pensando nisso, pesquisei um livro que me fizesse companhia por longas horas pré-oníricas e que tratasse justamente da dificuldade de dormir, ou de permanecer adormecido – o que, em verdade, não é muito diferente. Nada mais adequado ao tema que um título 'Insônia'. Atraído também pela fama de exímio contador de histórias-para-não-se-ler-no-escuro atribuída à Stephen King resolvi me embrenhar pelo mundo fantasioso e particularmente considerado fastidioso da clássica ficção de horror.

De King eu só conhecia 'O Iluminado', ainda assim em sua versão cinematográfica. Porém, algo em seu jeito de narrar histórias me prendeu ao livro de uma forma interessante. Consegui me prender aos detalhes de cenas aparentemente sem importância como uma conversa de vizinhos na mais absoluta rotina e aprender que um bom autor esconde nas cenas mais pacatas os tesouros mais valiosos de sua obra.


Trecho do livro:

A PRAIA era uma longa orla branca, como uma nesga de combinação de seda sob a bainha de um mar azul intenso, e achava-se totalmente vazia, exceto por um objeto a mais de sessenta metros de distância. O objeto redondo tinha o tamanho de uma bola de basquete, e encheu Ralph de um temor ao mesmo tempo profundo e — pelo menos por ora — infundado.

Não se aproxime, disse a si mesmo. É alguma coisa ruim. Uma coisa realmente ruim. É como um cão negro uivando para uma lua que só aparece de três em três anos, como sangue na pia, como um corvo empoleirado no busto de Palas bem na entrada do quarto. Você não quer se aproximar dele, Ralph, e não precisa fazê-lo porque isto é um daqueles sonhos lúcidos de que Joe Wyzer falou. Você pode simplesmente dar meia-volta e ir embora, se quiser.

Só que, querendo ou não, seus pés começaram a levá-lo para adiante, por isso talvez não fosse um sonho lúcido. Nem agradável, nem um pouco. Porque quanto mais se aproximava do objeto na praia, menos ele se parecia com uma bola de basquete.

Era de longe o sonho mais real que Ralph já vivera, e o fato de saber que estava sonhando até parecia acentuar a sensação de realidade. De lucidez. Sentia a areia fina e solta sob seus pés, morna mas não quente; ouvia o fragor das ondas ao quebrarem e se espalharem pela parte baixa da praia, onde a areia brilhava como pele morena e molhada; sentia o cheiro forte e úmido do sal e de algas que secavam, um cheiro que lhe lembrava férias de verão passadas na praia de Old Orchard, quando era criança.

Olhe aqui, amizade, se você não pode mudar este sonho, quem sabe pode apertar o botão de ejeção e saltar fora acordar, em outras palavras, agora mesmo.

Já vencera metade da distância até o objeto na praia e não alimentava mais dúvidas quanto à sua natureza — não era uma bola de basquete, era uma cabeça. Alguém enterrara um ser humano até o queixo na areia... e Ralph subitamente percebeu que a maré estava subindo.

Não saltou fora; antes, desandou a correr. E nisto, a crista espumosa da onda lambeu a cabeça. Ela abriu a boca e começou a gritar. Mesmo em gritos agudos, Ralph reconheceu imediatamente aquela voz. Era a voz de Carolyn.

A espuma de outra onda subiu a praia e lavou para trás os cabelos colados às faces molhadas da cabeça. Ralph começou a correr mais rápido, sabendo que certamente ia chegar tarde. A maré subia depressa. Afogaria Carolyn muito antes que ele pudesse retirar seu corpo enterrado na areia.

Você não precisa salvá-la, Ralph. Carolyn já morreu e não foi em uma praia deserta. Foi no quarto 317 do hospital Derry Home. Você a acompanhou até o fim, e o som que você ouvia não era o de ondas quebrando na praia, mas o do granizo batendo contra a janela. Lembra-se?

Lembrava-se, mas corria ainda mais rápido, levantando nuvens de areia fina à sua passagem.

Mas você não vai alcançá-la nunca; você sabe como é nos sonhos, não sabe? Cada coisa para a qual se corre vira outra coisa.

Não, o poema não era bem assim... ou seria? Ralph não sabia direito. Se lembrava claramente que, no fim, o narrador fugia às cegas de alguma coisa letal

(Espiando por cima do ombro vejo a forma)

que o perseguia pelo mato... perseguia-o cada vez mais de perto.

Mas ele estava se aproximando da forma escura na areia. Mas ela não estava virando outra coisa e, quando caiu de joelhos diante de Carolyn, compreendeu instantaneamente por que não fora capaz de reconhecer, mesmo à distância, a mulher com quem estivera casado durante quarenta e cinco anos; havia algo muito errado com sua aura. Aderia à pele como um plástico sujo de tinturaria. Quando a sombra de Ralph cobriu Carolyn, os olhos dela giraram para o alto como os de um cavalo que tivesse fraturado a perna, saltando uma cerca alta. Ela respirava em ofegos rápidos e assustados, e a cada expiração saíam jatos de aura cinza-negros de suas narinas.

O fio de balão, roto e fragmentado, que subia do alto de sua cabeça era de um roxo-negro de ferida infectada. Quando ela abriu a boca para gritar outra vez, uma substância repugnante e luminosa voou de seus lábios em fios pegajosos que desapareceram quase no mesmo instante em que os olhos de Ralph registraram sua presença.

Vou salvá-la, Carol! ele berrou. Ajoelhou-se e começou a cavar a areia em volta dela como um cachorro desenterrando um osso... e, quando esse pensamento lhe ocorreu, percebeu que Rosalie, a vira-lata madrugadora da Avenida Harris, estava sentada cheia de tédio às costas de Carolyn, que gritava. Era como se o cachorro tivesse sido convocado pelo seu pensamento. Rosalie, ele observou, também se achava envolta em uma imunda aura negra. Trazia o panamá desaparecido de Bill McGovern entre as patas, e parecia ter dado prazerosas dentadas no chapéu desde que se apossara dele.

Então foi aí que o diabo do chapéu foi parar, Ralph pensou, virou-se para Carolyn e começou a cavar com maior rapidez. Até ali, não conseguira livrar sequer um ombro.

Não se importe comigo! Carolyn berrou para ele. Já estou morta, lembra-se? Cuidado com as pegadas do homem branco, Ralph! O...

Uma onda, verde-vítrea na base e branco-talhado na crista, quebrou a menos de três metros da praia. Correu areia acima até onde estavam, congelando o saco de Ralph com a água fria e submergindo momentaneamente a cabeça de Carolyn em espuma carregada de areia. Quando a onda recuou, Ralph lançou seu próprio grito horrorizado ao indiferente céu azul. A onda que recuava fizera a Carolyn, em segundos, o que os tratamentos radiativos levaram quase um mês para realizar; arrancara seus cabelos, deixara-a careca. E o alto da cabeça começava a estufar no ponto onde se elevava o fio de balão enegrecido.

Carolyn, não! — berrou, cavando com maior empenho. Agora a areia estava molhada e desagradavelmente pesada.

Não se importe, ela falou. Sopros cinza-negros saíam de sua boca a cada palavra, como o vapor sujo de uma chaminé industrial. É apenas o tumor, e não é operável, por isso não perca nenhuma noite de sono com essa parte do espetáculo. Que diabos, é longa a viagem de volta ao Paraíso, por isso não se esquente com ninharias, certo? Mas tem que ficar de olho nas pegadas...

Carolyn, não entendo o que está dizendo!

Sobreveio outra onda que molhou Ralph até a cintura e tornou a cobrir Carolyn. Quando a onda recuou, o inchaço no alto da cabeça de Carolyn começou a se romper.

Você vai descobrir logo, logo, Carolyn respondeu, e então o inchaço espocou com um ruído que lembrava um soquete batendo numa fatia de carne. Uma névoa sangrenta invadiu o ar limpo e salino, e uma horda de insetos negros do tamanho de baratas começou a vazar de dentro da cabeça. Ralph nunca vira nada parecido — nem mesmo em sonho — e sentiu-se invadir por uma repugnância quase histérica. Teria fugido, fosse ou não Carolyn, mas ficou paralisado, demasiado chocado para mover um único dedo, quanto mais se levantar e correr.

Alguns insetos negros reentraram rapidamente pela boca de Carolyn que se abria em gritos, mas a maioria descia pela face e o ombro até a areia molhada. Aqueles olhos alienígenas e acusadores não abandonavam Ralph enquanto corriam. Tudo isso é culpa sua, os olhos pareciam dizer. Você poderia ter salvado sua mulher, Ralph, e um homem melhor teria feito isso.

Carolyn! ele gritou. Estendeu as mãos para a mulher, mas recolheu-as, aterrorizado com os insetos, que não paravam de transbordar de sua cabeça. Atrás dela, Rosalie permanecia sentada em seu pequeno círculo de treva, olhando-o muito séria e agora segurava na boca o chapéu perdido de McGovern.

Um olho de Carolyn saltou fora e caiu na areia molhada, como uma colherada de geléia de uva. Os insetos projetaram-se como vômito da órbita vazia.

Carolyn! ele gritou. Carolyn! Carolyn! Car...

( Insônia – Stephen King – Capítulo 8.1 )