quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O Último Conhaque


“... A violência do mundo patriarcal aproxima muito Herculano Lopes de um outro mineiro, Autran Dourado, embora este possua uma exuberância narrativa muito distante do estilo cru e árido do autor de O Último Conhaque. Quer dizer, os problemas são similares, as histórias se passam num tipo parecido de cidade, mas a técnica é bem diferente. Ambos são mundos ficcionais da memória, do olhar lançado para trás, porém o universo de Dourado se tinge de mitos e profundidade, é mundo de grandeza e decadência, o de Herculano Lopes é inundado de horror, de pobreza onde, imprensadas entre o rural e o urbano, as pessoas são confrontadas com uma coisa simples e clara: a injustiça. A eficácia de sua denúncia é que, mesmo sabendo de tudo isso, o leitor ainda assim fica contristado e envolvido.” ( Alfredo Monte, A Tribuna, Santos, SP)



Naquele início de madrugada do sexto dia de sua chegada a Santa Marta para o enterro de sua mãe, Maria Lucas, fulminada por um ataque cardíaco, e quase trinta anos depois da morte de seu pai, o médico Juko Lacena, assassinado com três tiros nas costas, seu filho, já com quase quarenta anos, estava ali na antiga casa, na sala, recostado à poltrona que fora de sua mãe e onde ela, depois do crime- e até mesmo antes dele-, passara a maior parte da vida. Já havia tomado muito conhaque, o estômago doía, e ele sentia uma incrível vontade de chorar. Tudo isso porque, contrariando a vontade dela, várias vezes repetida, ele voltara àquela cidade e, sobretudo, àquela casa onde muito de sua vida, da parte mais entranhada de sua vida, estava guardado naquelas gavetas, que-e isso o apavorava- ele não conseguia abrir, como se uma força misteriosa o impedisse. E como lutar contra ela? Ele não sabia. E, já bêbado e muito só, aquele homem, entre tantas outras lembranças, começou a recordar-se do dia em que a mãe saíra para faze compras e, ao voltar, os encontrara, a ele e a Rita (sua irmã), no quarto cuja entrada lhes era proibida: o do casal. E os dois estavam com o guarda-roupa aberto e já vestidos: ele, com o terno azul de seu pai, o cachimbo à boca, e Rita, sorrindo olhava-se no espelho já de batom passado, várias cores de sombra nos olhos, e começava a pintas as unhas. A princípio, apara alívio de ambos, a mãe nada disse, e chagou até a esboçar um sorriso. Mas, em seguida, após ir ao terreiro e de lá voltar com uma vara, deu-lhes uma surra, até que, cansados de tanto chorar, ele e Rita apenas soluçavam. E, como se não bastasse, ela ainda os trancou no quarto dos fundos, muito escuro e onde, nas noites de sexta-feira, aparecia a alma de um ex-promotor de justiça, o famoso Bode Velho que, antes de voltar para sua terra, Montes Claros, morara naquela casa, onde, em várias ocasiões – para o espanto de todos em Santa Marta -, se transformara em lobisomem: “a própria imagem do cão”, segundo diziam. E o homem, enchendo mais uma vez o copo, lembou-se também da vez em que ele, andando distraído pelo terreiro, encontrou a cobra de duas cabeças vista na tarde do dia anterior pela empregada que, em vez de matá-la, preferira lhe jogar água fervente, “pra sofrer mais”, ela disse. E a cobra, já quase morta pelas queimaduras, estava sendo picada por centenas de formigas, que numa fúria incontrolável, acabaram por liquidá-la. E aquela cena ele, mesmo depois de tantos anos, vivenciava com tanta clareza quanto se tivesse acontecido há poucas horas e as formigas ainda continuassem ali, acabando de consumar a tragédia. E, apertando os olhos e querendo pensar em outras coisas, o homem tomou mais um conhaque – um Macieira, finalmente!-, a dor no estômago continuou, e ele falou a si próprio e repetiu em voz alta que, tão logo amanhecesse -tivesse ou não aberto as gavetas-, iria procurar sua prima, entregar-lhe as chaves da casa e partir daquele lugar, pois não mais o tolerava. Então, já completamente tonto, adormeceu, enquanto lá fora, nas ruas, o silêncio ficou tão grande que nem Maria Teresa (sua prima), acostumada a ele e também sozinha, conseguia suportar. E ela, deixando-se levar pelo desassossego, puxou o cobertor sobre o corpo. E sentiu medo. Muito medo de ouvir outra vez o piar da coruja que, quase todas as noites, assustando-a cada vez mais, pousava numa árvore próxima à janela de seu quarto. Isso enquanto suas mãos, quentes e ásperas -e fora de controle-, começaram a acariciar os seios. E todo seu corpo tremia, e o ventre, quase molhado, começava a aceitar, muito timidamente, o contato dos próprios dedos, e ela, com medo daqueles instantes tornarem-se eternos, sentiu que, pela primeira vez, alguém poderia ser dono do seu coração.


Carlos Herculano Lopes, O Último Conhaque capítulo 28)

domingo, 22 de novembro de 2009

Guerra é paz, Liberdade é escravidão, Ignorância é força.


O livro faz parte do que se poderia chamar a “Trindade distópica” da literatura inglesa composta por 1984 (George Orwell), Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley) e Laranja Mecânica (Burgess). Os três livros mostram a seus leitores um futuro catastrófico e, em muitas partes, plausível. Distopia é um processo de construção literária oposto à utopia: constrói-se um mundo no qual não se quer viver, um mundo que habita seus pesadelos e no qual você não quer acordar.

Após assistir ao filme Laranja Mecânica e ter lido o comentário acima, me interessei também pelas outras duas obras distópicas da literatura inglesa. Num post anterior falei sobre o Admirável Mundo Novo de Huxley e agora é a vez de falar sobre 1984 de George Orwell.



No livro conta-se a história de Winston, um apagado funcionário do Ministério da Verdade da Oceania e de como ele parte da indiferença perante a sociedade totalitária em que vive, passa à revolta, levado pelo amor por Júlia e incentivado por O'Brien, um membro do Partido Interno com quem Winston simpatiza; e de como acaba por descobrir que a própria revolta é fomentada pelo Partido no poder. E também de como, no Quarto 101, o chamado "pior lugar do mundo", todo homem tem os seus limites.

A trama se passa na Pista No. 1, o nome da Inglaterra sob o regime totalitário do Grande Irmão (no original, Big Brother) e sua ideologia IngSoc (socialismo inglês), e conta a história de Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, um órgão que cuida da informação pública do governo. Diariamente, os cidadãos devem parar o trabalho por dois minutos e se dedicar a atacar histericamente o traidor foragido Emmanuel Goldstein e, em seguida, adorar a figura do Grande Irmão. Smith não tem muita memória de sua infância ou dos anos anteriores à mudança política e, ironicamente, trabalha no serviço de rectificação de notícias já publicadas, publicando versões retroactivas de edições históricas do jornal The Times. Estranhamente, ele começa a interessar-se pela sua colega de trabalho Julia, num ambiente em que sexo, senão para procriação, é considerado crime. Ao mesmo tempo, Winston é cooptado por O'Brien, um burocrata do círculo interno do IngSoc que tenta cooptá-lo a não abandonar a fé no Grande Irmão.

De fato, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro é uma metáfora sobre o poder e as sociedades modernas. George Orwell escreveu-o animado de um sentido de urgência, para avisar os seus contemporâneos e as gerações futuras do perigo que corriam, e lutou desesperadamente contra a morte - sofria de tuberculose - para poder acabá-lo. Ele foi um dos primeiros simpatizantes ocidentais da esquerda que percebeu para onde o stalinismo caminhava e é aí que ele vai buscar a inspiração - lendo Mil Novecentos e Oitenta e Quatro percebe-se que o Grande Irmão é baseado na visão de Orwell sobre os totalitarismos de vária índole que dominavam a Europa e Ásia na época. Stalin, também Hitler e Churchill foram algumas das figuras que inspiraram Orwell a escrever o romance.

O Estado controlava o pensamento dos cidadãos, entre muitos outros meios, pela manipulação da língua. Os especialistas do Ministério da Verdade criaram a Novilíngua, uma língua ainda em construção, que quando estivesse finalmente completa impediria a expressão de qualquer opinião contrária ao regime. Uma das mais curiosas palavras da Novilíngua é a palavra duplipensar que corresponde a um conceito segundo o qual é possível ao indivíduo conviver simultaneamente com duas crenças diametralmente opostas e aceitar ambas. Os nomes dos Ministérios em 1984 são exemplos do duplipensar. O Ministério da Verdade, ao rectificar as notícias, na verdade estava mentindo. Porém, para o Partido, aquela era a verdade. Assim, o conceito de duplipensar é plausível a um cidadão da Oceania.

Outra palavra da Novilíngua era Teletela, nome dado a um dispositivo através do qual o Estado vigiava cada cidadão. A Teletela era como que um televisor bidirecional, isto é, que permitia tanto ver quanto ser visto. Nele, o "papel de parede" (ou seja, quando nenhum programa estava sendo exibido) era a figura inanimada do líder máximo, o Grande Irmão.


Uma das informações mais curiosas e bem formuladas por Orwell em seu livro é a teoria da guerra, enunciada abaixo. Ultrapassando os limites da ficção, podemos aplicar esta teoria à realidade e refletirmos sobre os verdadeiros motivos das guerras.

No livro, Orwell expõe uma teoria da Guerra. Segundo ele, o objectivo da guerra não é vencer o inimigo nem lutar por uma causa. O objetivo da guerra é manter o poder das classes altas, limitando o acesso à educação, à cultura e aos bens materiais das classes baixas. A guerra serve para destruir os bens materiais produzidos pelos pobres e para impedir que eles acumulem cultura e riqueza e se tornem uma ameaça aos poderosos. Assim, um dos lemas do Partido, "guerra é paz", é explicado no livro de Emmanuel Goldstein: "Uma paz verdadeiramente permanente seria o mesmo que a guerra permanente".


( Fonte: Wikipédia, a Enciclopédia Livre )

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A Origem das Espécies


Às vezes, ao postar sobre determinados livros, prefiro me limitar à colocar sobre tais apenas recortes de trechos ou resumos retirados de fontes que não sejam o próprio livro. Devido à sedutora facilidade com que resenhas prontas podem ser encontradas pela net me liberto de ter de escrever eu mesmo o post e ganho com isso precioso tempo sem contudo prejudicar o objetivo do blog, que é simplesmente ser uma espécie de diário de leitura e me permitir relembrar livros lidos quando já houver se passado algum tempo.


A obra da vez foi 'A Origem das Espécies' do naturalista visionário Charles Darwin.

“Posto que esteja profundamente convencido da verdade das opiniões que em breves palavras tenho exposto no presente volume, não espero convencer certos naturalistas, muito experimentados sem dúvida, mas que, desde longo tempo, estão habituados a ver um conjunto de fatos num ponto de vista diretamente oposto ao meu. É muito fácil ocultar a nossa ignorância em expressões tais como plano de criação, unidade de tipo, etc.; e pensar que nos explicamos quando apenas repetimos um mesmo facto. Aquele que tiver qualquer disposição natural a ligar mais importância a algumas dificuldades não resolvidas do que à explicação de um certo número de fatos, rejeitará certamente a minha teoria. Alguns naturalistas dotados de uma inteligência aberta e já disposta a pôr em dúvida a imutabilidade das espécies podem ser influenciados pelo conteúdo deste volume, mas tenho mais confiança no futuro, nos novos naturalistas, que poderão estudar imparcialmente os dois lados da questão. Todo o que for levado a admitir a imutabilidade das espécies prestará verdadeiros serviços exprimindo conscienciosamente a sua convicção, porque somente assim se poderá desembaraçar a questão de todos os preconceitos que a cercam.
Alguns naturalistas eminentes exprimiram, recentemente, a opinião de que há, em certos gêneros, uma multidão de espécies, consideradas como tais, que não são, contudo, verdadeiras espécies; enquanto que há outras que são reais, isto é, que foram criadas de uma maneira independente. É esta, me parece, uma singular conclusão. Depois de terem reconhecido um conjunto de formas, que consideraram, muito recentemente ainda, como criações especiais, que são ainda consideradas como tais pela grande maioria dos naturalistas, e que, consequentemente, têm todos os caracteres exteriores de verdadeiras espécies, admitem que estas formas são o produto de uma série de variações e recusam estender esta maneira de ver a outras formas um pouco diferentes. Não pretendem, contudo, poder definir, ou mesmo conjecturar, quais são as formas que foram criadas e quais as que são produtos de leis secundárias. Admitem a variabilidade como vera causa num caso, e rejeitam-na arbitrariamente noutro, sem estabelecer qualquer distinção fixa entre os dois. O dia virá em que se poderão assinalar estes fatos como um curioso exemplo da cegueira resultante de uma opinião preconcebida. Estes sábios não parecem admirar-se mais de um ato miraculoso da criação do que de uma origem ordinária. Mas crêem eles realmente que em inumeráveis épocas da história da Terra certos átomos elementares receberam ordem de se agruparem em tecidos vivos? Admitem eles que em cada suposto ato de criação se tenha produzido um ou muitos indivíduos? As espécies infinitamente numerosas de plantas e animais terão sido criadas no estado de sementes, de óvulos ou de perfeito desenvolvimento? E, no caso dos mamíferos, terão essas espécies, depois da criação, trazido os indícios mentirosos da nutrição intra-uterina? A estas questões, os partidários da criação de algumas formas vivas ou de uma só forma não saberiam, sem dúvida, que responder. Diversos sábios têm sustentado que é tão fácil acreditar na criação de centos de milhões de seres como na criação de um só; mas em virtude do axioma filosófico de a menor ação, formulado por Maupertuis, o espírito é levado mais voluntariamente a admitir o menor número, e não podemos certamente crer que uma quantidade inúmera de formas da mesma classe tenham sido criadas com os sinais evidentes, mas enganosos, da sua descendência de um mesmo antepassado.
Como recordação de um estado de coisas anterior, tenho empregado, nos parágrafos precedentes, muitas expressões que implicam nos naturalistas a crença na criação de cada espécie. Tenho sido muito censurado de me haver exprimido assim; mas era isto, sem dúvida alguma, a opinião geral quando da aparição da primeira edição da obra atual. Discuti outrora com muitos naturalistas sobre a evolução, sem encontrar jamais o menor testemunho simpático. É provável, portanto, que alguns acreditassem na evolução, mas ficassem silenciosos, ou se exprimissem de uma maneira de tal modo ambígua, que não fosse fácil compreender a sua opinião. Hoje, tudo mudou e quase todos os naturalistas admitem o grande princípio da evolução. Há, contudo, quem acredite ainda que as espécies têm subitamente produzido, por meios ainda inexplicáveis, formas novas totalmente diferentes; mas, como procurei aqui demonstrar, há provas poderosas que se opõem a toda a admissão destas modificações bruscas e consideráveis. No ponto de vista científico, e mesmo conduzindo a estudos ulteriores, há apenas pouca diferença entre a crença de novas formas terem sido produzidas subitamente de uma maneira inexplicável pelas antigas formas muito diferentes, e a velha crença na criação das espécies por meio do barro.
Até onde, poderão perguntar-me, levais vós a vossa doutrina da modificação das espécies? Eis uma pergunta à qual é difícil responder, porque, quanto mais distintas são as formas que consideramos, mais os argumentos em favor da comunhão de descendência diminuem e perdem a sua força.”


(Trecho de “A Origem das Espécies”-Charles Darwin págs 483 e 484 - Tradução de Joaquim Dá Mesquita Paul )


«Para concluir, não deixeis crer ou sustentar, devido a uma idéia muito acentuada da fraqueza humana ou a uma moderação mal entendida, que o homem pode ir longe ou ser instruído com a palavra de Deus, ou com a do livro das obras de Deus, isto é, em religião ou em filosofia; mas que todo o homem se esforce por progredir cada vez mais numa e noutra, e tirando disto vantagem sem jamais Parar.»
BACON, «Advancement of Learning».

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Tempo de Delicadeza



Reta final de preparação pré-vestibular, e eis que uma nova luz surge no meu túnel: Affonso Romano de Sant'Anna. Para provar que nem só de teses chatíssimas e arcaicas vive a boa literatura; a literatura de verdade vive, inclusive, melhor sem arcaísmos, com a delicadeza das rosas.






Tempo de delicadeza


Affonso Romano de Sant'Anna


"Sei que as pessoas estão pulando na jugular umas das outras.
Sei que viver está cada vez mais dificultoso.
Mas talvez por isto mesmo ou talvez devido a esse setembro azulzinho, a essa primavera que vem aí, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nesta crônica, varando os tiroteios, os seqüestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nos cruzamentos da televisão ou do cinema com a própria vida.


Talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. Drummond dizia: Sejamos pornográficos, docemente pornográficos. Parece que aceitaram exageradamente seu convite, e a coisa acabou em grosseiramente pornográficos. Por isto, é necessário reverter poeticamente a situação e com Vinícius de Moraes ou Rubem Braga dizer em tom de elegia ipanemense:


Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados. Com a delicadeza de São Francisco, se pudermos. Com a delicadeza rija de Gandhi, se quisermos.


Vejam o nosso sedutor e exemplar Vinícius, que há 20 anos nos deixou, delicadamente. Era um profissional da delicadeza. Naquela sua pungente Elegia ao primeiro amigo, nos dizia:


Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água.
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo.


Está aí: porque somos ferozes precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados, que o sejam ferozmente delicados. Lembram-se de Rimbaud? Ele dizia: Por delicadeza, eu perdi minha vida.


Há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. Outras, até o emprego. Há as que perdem o amor por amorosa delicadeza. Sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza.


Confesso que, buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses do século passado. Mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. Não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. Mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de ser cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.


A delicadeza não é só uma categoria ética. Alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.


Ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de Mozart. A delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um Vermeer, por exemplo. A delicadeza repousante das garrafas nas naturezas-mortas de Morandi. Na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.


Sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um MST com sua foice e fúria dos prédios ocupados. Mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres desse país há 500 anos?


Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou o seu contato com os índios brasileiros: Morrer se preciso for, matar nunca.
Sei que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo, não nos deixam ser delicados.


E eu não sei?


Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E se necessário for, cruelmente delicados." (Crônica TEMPO DE DELICADEZA (L&PM) )


É claro que essa não é a única crônica boa do cara, mas ficará relatada por trazer uma idéia poética e filosófica interessantíssima e urgente.