quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Avatar

(Théophile Gautier)1       

 

Gautier joga com o dualismo corpo e alma e nos mostra o que seria possível (e muitos afirmam veementemente que é, mas essa discussão não vem ao caso agora) se a alma –nossa psyché- fosse estruturada de tal forma que pudesse ser separada do corpo e colocada em outro.

 

 

 

 

Ninguém podia compreender qual a doença que ia consumindo lentamente Otávio de

Saville. Não se encontrava acamado, conduzia vida regular, nunca um lamento lhe saiu

dos lábios; entretanto, definhava a olhos vistos. Examinado pelos médicos, que a

solicitude dos parentes o obrigavam a consultar, não acusava nenhum sofrimento

determinado, e a ciência não descobria sintoma algum grave. Mas a vida afastava-se dele,

fugindo por umas dessas frestas invisíveis, de que, segundo Terêncio, o homem está

repleto.

Às vezes, uma singular síncope o tornava branco e frio qual mármore. Durante um

minuto ou dois, passava por morto, mas logo se reanimava, e Otávio parecia estar

despertando de um pesadelo. Fizera uma estação de águas, viajara, mas nem mesmo sob o

belo sol de Nápoles obtivera melhores resultados, pois, onde os "lazzaroni" seminus se

bronzeavam, Otávio sentira-se gelar.

Voltara, portanto, ao seu apartamento da Rua São Lázaro, e retomara, aparentemente,

seus velhos hábitos. Aquele apartamento de solteiro, mobiliado com elegância, com todo

conforto, parecia sofrer a influência e o pensamento de quem ali habitava, pois também

era triste, apesar do luxo que nele reinava. João, o velho servo de Otávio, qual uma

sombra, na ponta dos pés, porque, impressionado pela melancolia do patrão, perdera sua

habitual loquacidade. Estatuetas, troféus de caça, máscaras artísticas. armas, pendiam das

paredes. Uma carta mal começada. livros abertos, permaneciam pelas mesas. Embora

habitado. o apartamento parecia deserto. A vida estava ausente dali e os raros visitantes

tinham a impressão de receber no rosto um sopro de ar gélido, do que sai das sepulturas

quando se abrem.

Nessa lúgubre morada, onde jamais uma mulher jovem pusera pé, Otávio se encontrava

mais à vontade do que em qualquer outra parte: o silêncio, o abandono, a tristeza,

convinham-lhe. Fugia ao tumultuar das festas, cessara de lutar contra aquela misteriosa

dor e deixara o tempo correr, entregando a Deus a solução do seu caso.

Todavia, antes de assim enlanguescer, Otávio tinha sido o que se chama um belo rapaz:

espessos cabelos negros, crespos e brilhantes nas têmporas, olhos longos e aveludados, de

azul profundo, encimados por sobrancelhas recurvas, davam a impressão de pertencerem a

algum oriental; tez olivastra, mãos finas e delicadas, pés pequenos e arqueados. Trajava-se

bem, sabia explorar seus dotes naturais, e recepções.

E por que esse moço, belo e rico, tendo tudo para ser feliz, ia definhando lentamente?

Porque os médicos não atinavam a causa de sua moléstia, porque a alma não fora ainda

secionada. nos laboratórios anatômicos de Paris.

Estava nesse ponto, quando resolveu procurar um médico famoso, recém-chegado das

índias, gozando da fama de operar curas. miraculosas. Otávio, porém, parecia temer esse

encontro com o doutor Baltasar Cherbonneau, que sua mãe, tão aflita, lhe recomendara.

Quando o médico chegou, o jovem estava estendido no divã, debaixo de um cobertor,

tendo ao lado a mesinha repleta de vidros de remédios. Não fora pela sua palidez e a

atonia profunda do olhar, seu aspecto seria de uma pessoa sadia.

Embora já indiferente a tudo, a presença do médico o chocou. Baltasar Cherbonneau

dava a impressão de uma figura fugida de um conto fantástico de Hoffmann. Rosto

bastante escuro, que terminava, ao alto, num crânio enorme, cuja calvície tornava ainda

mais vasto, liso e brilhante como marfim. Os raros cabelos, grisalhos, estavam ajeitados

em mechas, junto às orelhas e na nuca. Porém o que mais atraia a atenção eram seus

olhos. Naquele rosto magro e ossudo, pele de pergaminho, onde a ciência havia impresso

sua marca, eles resplendiam. como duas estrêlas azuis, límpidos, frescos, cheios de

mocidade. Seu trajo era o mais clássico dos médicos: casaco comprido, calças negras,

camisa branca, ande, no peitilho, reluzia um enorme diamante. Sua magreza era

impressionante, dando-lhe um aspecto de um faquir, ossudo, comprido. Passava por dandy

ou gentleman rider.

— Então, meu senhor? - disse o médico, após um silêncio, que lhe serviu para uma

rápida inspeção - já vi que o senhor não é um caso de patologia vulgar, não tem nenhuma

dessas moléstias que os médicos curam ou pioram e, depois de examiná-lo, fique certo de

que não lhe darei nenhum papel rabiscado, desses que os farmacêuticos tanto gostam de

aviar.

Otávio sorriu debilmente, mas o médico prosseguiu:

— Dê-me a mão.

Quando Cherbonneau tomou nas suas mãos ossudas, que pareciam garras, a mão

delicada e úmida do moço, este sentiu uma ansiosa emoção, pois lhe parecia que o outro

lhe arrancasse a alma, com aquela pressão.

— Meu caro senhor, - sentenciou o médico, abando, dando a mão do jovem - suas

condições são muito mais graves do que está pensando, e a ciência, ao menos a européia,

nada pode fazer. O senhor não possui mais vontade de viver, sua alma se destaca

lentamente do corpo. Caso raro e curioso: se eu não me opuser, o senhor acabará

morrendo, sem qualquer lesão interna ou externa. Fez bem em chamar-me, porque o

espírito está preso à matéria por um fio. Mas, saberemos dar-lhe um belo nó.

E o médico esfregou alegremente as mãos, com um grotesco sorriso.

— Senhor Cherbonneau, não sei se irá curar-me, nem tenho desejo que assim o faça,

mas devo confessar que de relance a causa do misterioso estado em que me encontro. A

vida para mim não passa de uma pantomima, que eu represento ainda para não afligir mais

minha Pobre mãe, pois já me sinto fora da esfera humana. 2

— O senhor está com uma impossibilidade de viver. Que dor lhe dilacera o fígado? De

que alta ambição tombou? É muito moço para essas coisas... Alguma mulher o enganou?

Love's labours lost, que quer dizer, se me não engano, penas de amor perdidas...

Precisamente... - e Otávio empalideceu. ao ralar. - Mas. não espere nada de romanesco,

doutor, é uma aventura comum, tão vulgar, que até sinto acanhamento em confessar a um

homem tão viajado e vivido... Pois bem, doutor, eu estou morrendo de amor...

Encontrava-me em Florença, em 184... em fins do verão, a melhor estação para se ver

Florença. Eu possuía tempo, dinheiro, boas cartas de recomendação, e era um rapaz bem

humorado, que desejava divertir-se. Visitei todos os museus e pontos pitorescos da cidade,

diverti-me a valer, passei um mês dos mais felizes de minha vida, mas minha ventura não

podia durar. Um dia, uma rica e nobre carruagem passou por mim. Era uma caleça aberta,

com criados de libré e brasão impresso aos lados. Nela estava uma dama trajada de verde,

mas de um verde prateado, uma loura esplendorosa, dessas cuja beleza é até um insulto,

tanto estava segura de si. Seu rosto tinha, como auréola, um chapeuzinho da mais fina

palha florentina e a sua única jóia era um bracelete de ouro, marchetado de turquesas.

Testa cândida e pura, cílios que lembravam miniaturas medievais, boca divinal, e seus

olhos azuis tinham estranhas mutações. Tudo nela me encantou, fazendo-me esquecer os

amores passados. Uma nova vida começou para mim, depois daquele fatal encontro.

Soube, mais tarde, que era a condessa Prascóvia Labinski, lituana de ilustre linhagem,

riquíssima, cujo marido fazia dois anos que combatia no Cáucaso. Graças a minhas

influências, consegui ser recebido por ela, e, se sua maravilhosa beleza me encantara, mais

ainda me seduziu seu espírito. Não lhe confessei meu amor, pois em sua presença eu

ficava inibido até de pensar. Vinte vezes tomei essa resolução, porém, uma incrível

timidez me impedia as palavras. Saía de sua casa, murmurando-lhe o nome, baixinho, e

experimentava um singular prazer em pronunciar-lhe as sílabas repetidamente. E traçava

aquele nome adorado em tudo quanto era papel que me surgisse à frente. Deixei de ler, de

escrever, de ir a festas, não mais me importavam as cartas que recebia de França.

Contentava-me em amar, sem nada pedir, sem a menor sombra de esperança, pois a

virtude da condessa era inatacável.

Um dia, porém, não mais podendo conter o desejo de rever a minha visita habitual.

Encontrei-a a sós, reclinada no canapé. Nunca me pareceu tão linda como naquele

langoroso abandono.

Acenou-me uma poltrona a seu lado. Sentei-me, e reinou entre nós, por alguns

momentos, um desses silêncios que se tornam tão penosos em certas circunstâncias. Meu

cérebro estava em chamas, ondas de fogo me subiam do coração à boca e meu amor me

gritava: "Não perca esta suprema ocasião!" Não sei que teria dito, quando a condessa,

talvez adivinhando a causa de minha perturbação, estendeu para mim sua linda mão, como

para fechar-me a boca, e disse:

— Não diga uma palavra, Otávio. O senhor me ama, sinto-o, mas não o culpo, porque

o amor é involuntário. Outras mulheres, mais severas, poderiam ofender-se, mas eu o

lamento, porque não posso corresponder-lhe, e dói-me vè4o sofrer. Amaldição o capricho

que me fez vir para cá. Pensei, a princípio, que minha indiferença poderia faze-lo desistir,

mas o verdadeiro amor não recua nunca. Eu devo, porém, proteger meu nome e do meu

marido, o conde Labinski, a quem adoro, e que é louco por mim.

Uma torrente de lágrimas brotou-me dos olhos, ante essa declaração, tão franca, nobre

e leal. Prascóvia, como- vida, passou o lenço pelos meus olhos.

— Não chore, está proibido de chorar. Faça de conta que morri, viaje, pratique o bem,

viva, console-se na arte, em outro amor... Pode continuar a visitar-me, que será sempre

bem recebido, mas creio que será melhor afastar-se de mim, a distância deve ser o

remédio mais adequado. Penso que, daqui a dois anos... poderemos encontrar-nos sem

perigo.

No dia seguinte, deixei Florença, mas nem as viagens nem o estudo e tampouco o

tempo tiveram a força de diminuir-me os sofrimentos, e sinto-me morrer. Não mo impeça,

doutor!

— Nunca mais viu a condessa? - perguntou o médico, cujos olhos brilhavam

singularmente.

— Não, mas ela se encontra aqui, em Paris...

E, ao responder, apresentou um cartão de visita, onde se lia: "A condessa Prascóvia

Labinski recebe às quintas-feiras".

Dois anos haviam transcorrido desde que a condessa Labinski sustara nos lábios de

Otávio a declaração de amor que ela não devia ouvir. O rapaz, caído do alto de seu sonho

de amor, afastara-se, levando consigo a devoradora mágoa, e nunca mais dera notícias de

si a Prascóvia. Mais de uma vez, porém, a condessa pensara, com tristeza, em seu pobre

admirador. Tê-la-ia esquecido? Sua alma bem formada sofria em pensar que alguém era

infeliz por sua causa.

Prascóvia e Olaf amavam-se desde a infância e, ao voltar ele da guerra, o amor entre

ambos aumentara. Nada poderia perturbar sua felicidade. O conde era esbelto, elegante, e,

sob uma aparência delicada, ocultava músculos de aço. Sua presença, em grande

uniforme, nas festas, provocava a inveja dos homens e a admiração das mulheres. Era

realmente um rival contra quem nada poderia fazer Otávio de Saville. Desde sua chegada

a Paris, a condessa enviara aquele cartão e, ao ver que ele não aparecia, dizia entre si, com

mal contido prazer: "Ele ainda me ama!" Apesar disso, era uma mulher angelicamente

pura e casta como a neve dos mais excelsos cumes do Himalaia.

— Sua história prova-me que qualquer esperança de sua parte seria quimérica, pois a

condessa jamais correspondera ao seu amor, - sentenciou o médico. - Mas existem poderes

ocultos que a ciência moderna desconhece, e dos quais se conserva a tradição nesses

estranhos países chamados bárbaros por uma ignorante civilização. Aqueles sábios, que

possuem visões estranhas e que seguem de êxtase em êxtase as ondulações que deixam as

eras desaparecidas sobre o oceano da eternidade, percorrem o infinito em todas as

direções, assistem à criação dos universos, à gênese dos deuses e às suas metamorfoses.

São tidos por loucos, mas são quase deuses!

Otávio ouvia, perplexo. Que conexão poderia haver entre os sábios hindus e sua paixão

pela condessa? O doutor lia-lhe o pensamento, e prosseguiu: Paciência, meu caro senhor.

Vai ver que não me entrego a digressões inúteis. Farto de interrogar cadáveres, que não

me respondiam, nas frias pedras do necrotério, concebi um projeto, tão ousado quanto o

de Prometeu, que escalou o céu para roubar o fogo: o pensamento de chegar até à alma,

surpreendê-la, analisa-la e secioná-la. Abandonei a ciência materialista, cuja vacuidade eu

sentira. Tentei o hipnotismo, catalepsia, sonambulismo, tudo foi por mim observado.

Estudei os arcanos gregos, hebraicos, egípcios, mas meu sonho científico não estava

concretizado. A alma me fugia sempre: entre mim e ela, permanecia um véu tênue de

carne, que eu era incapaz de remover. parti para a índia, buscando encontrar a chave do

enigma. Aprendi o sânscrito, conversei com os brâmanes, decifrei as esculturas simbólicas

e os emblemas dos deuses híbridos e exuberantes como a própria natureza da índia.

Meditei sobre o círculo de Brama, de Visnu, a cobra de Siva, e todas essas figuras

monstruosas me diziam, em sua linguagem de pedra: "Não somos mais que formas, o

espírito agita a matéria".

E, após tantos anos de pesquisas, encontrei, junto a um velho e santo sacerdote, Brama-

Logum, o que eu tanto procurava: conseguir destacar a alma do corpo! Visnu, o deus das

dez encarnações, revelara-lhe a palavra misteriosa, que lhe guiara as várias formas, em

seus, Avatares.

E agora, meu caro senhor, se assim me aprouvesse, após fazer os gestos rituais, eu

pronunciasse aquela palavra, a= alma iria habitar o corpo do homem ou do animal que eu

lhe designasse. Só eu possuo, no mundo, este segredo!

— Que está dizendo, doutor? - exclamou Otávio, assustado.

— Quero dizer que a condessa Prascóvia seria demasiado sábia se conseguisse

reconhecer a alma de Otávio de. Savifie rio corpo de Olaf Labinski...

O doutor Baltasar Cherbonneau estava em seu misterioso e exótico consultório, sempre

imerso em suas lucubrações - Nos cantos, viam-se os mais fantásticos ídolos de todas as

religiões, e obras de pintores famosos, representando os nove AvaWes cumpridos por

Visnu, em peixe, tartaruga, porco, leão de cabeça humana, anão brãmane, rã, herói

combatendo gigantes, menino prodígio, em que certos sonhadores vêem um Cristo hindu,

e, no meio da via-láctea, esperando sua última encarnação em cavalo branco alado, cujos

coices irão provocar o fim do universo.

O conde Olaf Labinski ouvira falar nos milagres operados pelo médico, e sua

curiosidade semi incrédula despertara. As raças eslavas possuem uma tendência inata para

lo sobrenatural. Quando ele penetrou no gabinete, sentiu sufocar-se de calor, todo o

sangue lhe afluiu às têmporas, os ouvidos zumbiram, mas bastou o médico traçar umas

fórmulas mágicas no espaço e a temperatura se tornou agradável.

— Está melhor, agora, senhor conde? Seus pulmões, habituados às brisas do Báltico,

devem sofrer, neste ambiente calidíssimo, mas no qual eu tremo de frio. Certamente, o

senhor já ouviu falar em meus jogos de prestidigitação e deseja pôr à prova minha

habilidade...

— Não, senhor, minha curiosidade não é assim tão frívola; respeito a ciência.

— Não sou um cientista, no sentido que aqui dão a essa palavra. Apenas, estudei as

potências ocultas, espreito a alma. O espírito é tudo, a matéria não existe, o universo

talvez não passe de um sonho de Deus. O senhor já deve ter ouvido falar no espelho

mágico, onde Mefistófeles fez o doutor Fausto ver a imagem de Helena. Queira curvar-se

sobre essa inocente taça de água, e pense intensamente na pessoa que deseja ver. Viva ou

morta, próxima ou distante, ela atenderá ao seu apelo, do outro lado do mundo ou da

profundidade da História!

O conde inclinou-se sobre a taça, e logo viu a água turvar-se e um círculo, irisado por

todas as cores do prisma, se espalhou pelas orlas do vaso, emoldurando o quadro que se

esboçava sob a nuvem alvacenta. Logo a névoa se dissipou. Uma jovem senhora, de olhos

verde-mar e cabelos de ouro, sentada ao piano, que, em trajes de casa, passava suas mãos

distraídas por sobre o teclado, desenha-se na água, que se tornara transparente; era

Prascóvia Labinski, que, ignara de tudo, atendia à apaixonada invocação do marido.

— E, agora, passemos para algo mais curioso - disse o médico, apanhando a mão do

conde e pousando-a numa das varetas de aço que estavam sobre a mesa.

Mal tocou o metal carregado de fulgurante magnetismo, caiu como se fora atingido por

um raio. Baltasar Cherbonneau recebeu-o nos braços, levantou-o qual uma pluma e

colocou-o num divã. Em seguida, chamou o criado e disse:

— Mande entrar o Senhor Otávio de Saville.

Quando Otávio - viu o conde Olaf Labinski estendido, imóvel, pensou logo num

assassínio, e emudeceu de horror, mas, após um exame mais atento, percebeu que o

homem apenas estava adormecido.

Otávio, perturbado pela estranheza das coisas, nada respondia; continuava a fitar Olaf,

que jazia com sua nobre figura, qual uma efígie desses cavaleiros que se vêem nas

sepulturas góticas. Sentia um vago remorso só em pensar que em breve iria furtar-lhe o

corpo. O médico, ao vê-lo assim pensativo, sorriu com desdém, e preveniu-o:

— Se não estiver firme em sua convicção, posso reanimar o conde, mas, pense bem,

ocasião como esta talvez nunca mais se apresente. Todavia, por muito que seu amor me

comova e por mais vivo que seja meu desejo de realizar uma experiência nunca tentada na

Europa, não devo ocultar-lhe que essa permuta de almas tem seus perigos. Interrogue bem

seu coração. Está disposto a arriscar francamente sua vida nesta suprema cartada?

— Estou pronto - foi a simples resposta.

— Está bem, rapaz - exclamou o médico, esfregando as mãos mornas e secas, com

grande rapidez, à maneira dos selvagens quando acendem o fogo. - Essa paixão, que nada

faz recuar, agrada-me. Ali, meu velho Brama-Logum. você vai ver, do fundo dos céus da

Índia, que não me ensinou em vão a palavra mágica!

Sente-se nessa poltrona, à minha frente, e confie em mim. Olhos nos olhos, mãos nas

mãos... O encantamento já está agindo... as noções do tempo e do espaço desaparecem, a

consciência do eu se evola, as pálpebras se fecham, os músculos não recebem mais ordens

do cérebro, relaxam-se; o pensamento se embota, todos os delicados fios que prendem a

alma se soltam. Brama, em seu ovo de ouro, onde sonhou durante dez mil anos, não estava

mais separado das coisas exteriores. Saturemo-lo de eflúvios, inundemo-lo de raios... - e o

médico, ao murmurar essas frases, não parava de traçar círculos mágicos, de seus dedos

brotavam faíscas luminosas, que iam atingir - testa e o coração do paciente, em redor do

qual se formava, aos poucos, uma áurea visível e fosforescente.

Isto feito, envergou com solenidade um roupão de linho, lavou as mãos em água

perfumada, apanhou de diferentes caixas certos pós, com que traço, nas faces e na testa do

moço, sinais hieráticos, cingiu nos braços o cordão brâmane, leu alguns poemas sagrados,

abriu totalmente as bocas dos aquecedores e logo a atmosfera se tornou tórrida,

insuportável.

— É necessário que estas duas centelhas de fogo divino, que agora irão encontrar-se

nuas e despojadas de seu invólucro mortal por alguns segundos, não venham a

empalidecer-se e apagar-se em nossa atmosfera glacial - murmurou o médico, olhando

para o termômetro, que marcava 1209 Fahrenheit.

Entre aqueles dois corpos mortos, Cherbonneau, em suas brancas vestes, parecia o

sacerdote daquelas religiões sanguinárias, que atiravam corpos humanos nas fogueiras de

seus deuses. Aproximou-se do conde Olaf, que jazia imóvel, e pronunciou a inefável

sílaba, que depois repetiu sobre Otávio, imerso em sono profundo. Ninguém reconheceria

naquela figura hoffinaniana, que exercitava aquele sinistro ritual, o médico de pouco

antes.

Aconteceram, então, coisas estranhas. Otávio de Saville e Olaf Labinski foram

tomados, simultaneamente, uma convulsão quase agõnica: seus rostos se decompuseram,

leve espuma subiu-lhes aos lábios, a tez se lhes cobriu de mortal palidez, ao passo que

duas chamazinlias azuis e tênues cintilavam, trêmulas, sobre suas cabeças. A um gesto

fulmíneo do médico, que traçava o caminho que elas deviam seguir, no ar, as duas faúlhas

fosforescentes moveram-se, deixando atrás de si um sulco luminoso, indo para suas novas

moradas; a alma de Otávio ocupou o corpo do conde e, a deste, o corpo de Olaf. O avatar

fora cumprido!

Um leve rubor indicava que a vida já reentrara naquelas figuras de argila, tornadas

exanimes por alguns segundos e das quais o Anjo Negro não tardaria a apossar-se, sem o

poder do médico, cujas pupilas flamejavam de triunfo.

— Médicos e cientistas de todas as eras, um humilde faquir sabe mil vezes mais que

vocês! Que importa o ,`cadáver, quando se governa o espírito? Agora, despertemo-los.

E, após um singular bailado, sacudindo os dedos a todo instante, o estranho

personagem fez Otávio Labinski (assim chamaremos, doravante, o jovem francês)

despertar e sentar-se. Otávio passou as mãos pelos olhos e olhou em redor de si,

atônitamente, pois sua consciência ainda estava adormecida. Quando recobrou a lucidez, a

primeira coisa que viu foi seu próprio corpo sobre um divã. Lançou um grito, e aquela

voz, que não era mais a sua, aterrorizou-o.

— Então, que lhe parece sua nova residência? - interrogou Cherbonneau, depois de

gozar bastante com o espanto do moço. - Não deseja mais morrer? Agora, as portas do

palácio Labinski estão abertas para o senhor.

— Doutor... o senhor possui o poder de um Deus. . ou de um demônio...

— Oh, não tenha medo, não lhe farei assinar nenhum pacto infernal! Nada mais

simples, o que aqui ocorreu. O Verbo, que criou a luz, pode mudar uma alma de lugar.

— Como pagar este inestimável serviço, doutor?

— Nada me deve. Seu caso me interessava. Revelou-me o verdadeiro amor. Ande,

levante-se, caminhe, veja SC seu invólucro não o embaraça!

Otávio Labinski obedeceu, deu alguns passos. Embora a alma fosse outra, o corpo do

conde conservava o impulso de seus hábitos antigos e o hóspede recente entregou-se

àquelas recordações físicas, gostando de tomar o porte, o andar, os gestos do proprietário

expulso.

— Se não tivesse eu mesmo efetuado essa troca de almas, não acreditaria - comentou o

médico, cheio de orgulho. - Mas, é quase meia-noite, vá para junto de Prascóvia Labinski,

antes que ela o censure pela demora. Não comece sua vida conjugal com discussões, seria

de mau augúrio.

Otávio Labinski reconheceu a justeza das ponderações e retirou-se logo. Aos pés da

escadaria de entrada, estava uma riquíssima carruagem. Otávio entrou e deu ordem ao

cocheiro para seguir rumo ao palácio.

Aquela imponente mansão impressionou-o, a princípio, pois mil pensamentos lhe

turbilhonavam na mente. E não era para menos, pois ignorava os labirintos internos e os

hábitos do conde. Ao chegar ao salão, puxou o cordão de uma campainha; surgiu uma

camareira, que lhe disse:

— A Senhora. está à sua espera.

Olaf de Saville (assim ficará sendo chamado, agora) saiu qual um fantasma dos limbos

do profundo sono, tendo a impressão de haver sofrido um doloroso pesadelo. Os

espetáculos estranhos a que assistira, antes de adormecer, aquele recinto abafado, repleto

de figuras estranhas e tétricas, tudo o assustava. A sua frente, porém, se encontrava

Baltasar Cherbonneau, sorrindo, bonachão.

— Está satisfeito, o senhor conde, com minhas experiências? Agora, acreditará que o

magnetismo não é um jogo de prestidigitação, como dizem os cientistas!

Olaf de Savílle acenou afirmativamente e apressou-se em sair. Estranhou, na verdade, a

voz do cocheiro, que não tinha sotaque húngaro. Seu espírito ainda se debatia nas

estranhas cenas a que presenciara e caiu numa espécie de modorra, despertando somente

quando o carro parou. Isso o trouxe novamente a si. Baixou o vidro, olhou para fora e viu

uma rua desconhecida, uma casa que não era a sua.

Onde me trouxe ? Este não é o palácio Labinski!

Perdão, senhor, - murmurou o cocheiro - não entendi bem.

— Imbecil, você deve estar bêbado ou louco! - berrou .Olaf de Saville, empurrando o

homem.

— Bêbado ou louco deve estar o senhor - retrucou o cocheiro.

— Cale-se, animal, bandido! Saia daqui, antes que suje minhas mãos no sangue ignóbil

de um lacaio! É trata seu amo, o Senhor de Labinski?

Aos primeiros gritos, acorrera a criadagem, e um dos fâmulos adiantou-se e disse:

— Já que o senhor pretende ser o Conde Labinski, olhe para cima e veja-o descer as

escadas.

Um suor frio banhou as têmporas de Olaf de Saville. jovem elegante, de rosto oval,

olhos negros, nariz a os bigodes louros, o qual não era outro senão um espectro modelado

pelo diabo, dirigiu-se a ele numa atitude fria e altiva.

— Senhor, pare de insultar os criados. Se deseja falar o conde Labinski ele o receberá

do meio-dia às duas. A condessa recebe, às quintas-feiras, as pessoas que tiveram a honra

de ser-lhe apresentadas.

Dito isto. o falso conde retirou-se tranqüilamente, ao - que Olaf dé Saville era levado

para dentro da casa, desmaiado.

Quando recuperou os sentidos, jazia numa cama que não era a dele, num quarto

desconhecido, e junto a si estava Um criado estranho, que lhe segurava a cabeça e dava-

lhe - Para cheirar.

— O senhor está melhor? - perguntou julgando estar falando com Otávio.

— Sim, mas deixe-me só.

O criado acendeu a luz dos candelabros e saiu. Olaf de Saville foi até o espelho, onde

viu a imagem de alguém de cabelos negros e bastos, olhos de um azul escuro, suave.

Pálido, melancólico, ornado por uma barbicha, que olhava para ele com ar espantado. A

princípio, pensou que fosse brincadeira de algum amigo. Passou a mão por trás de si mas

nada encontrou. Notou que suas mãos eram mais compridas e que, no anular direito, havia

um anel com um brasão baronal. Nunca tinha visto aquela jóia. Pôs a mão no bolso e

encontrou alguns cartões de visita, com este nome: Otávio de Saville. Uma completa

transformação se operara nele, sem que o soubesse. Algum mago, ou demônio, roubara-

lhe a personalidade, deixando- lhe somente a alma. E o pior é que não poderia fazer valer

seus direitos de conde Labinski, pois passaria por louco ou impostor, sua própria esposa o

repeliria. Uma idéia atroz picou-lhe o coração!

— Mas esse conde fictício, a estas horas, em forma de vampiro, habita meu palácio,

está pondo seu pé de cabra no recinto sagrado de Prascóvia, e esta lhe sorri e se entrega a

ele.

O sangue subia-lhe à cabeça, qual fogo ardente; gritava, mordia os punhos, vagava pelo

quarto como fera enjaulada. Estava prestes a enlouquecer. Afinal, readquiriu a calma e

mergulhou a cabeça n'água, dizendo a si mesmo que aquilo talvez não passasse de uma

brincadeira de mau gosto daquele feiticeiro negro. Atirou-se à cama e mergulhou num

sono pesado, opaco, semelhante à morte.

O conde abriu os olhos e lançou em torno de si um olhar indagador. Viu um quarto

bem mobiliado, onde abundavam cortinas e bibelôs, mas que em nada se parecia com o do

palácio em que vivera até então. João aproximou-se.

— O senhor vai levantar-se? - perguntou o servo, apresentando ao amo o traje que

Otávio costumava usar pela manhã.

Embora lhe repugnasse vestir a roupa de um estranho, o conde vestiu-a e, a outra

pergunta de João, respondeu que desejava o almoço à hora de sempre. Depois, abriu a

correspondência, revistou as gavetas, e convenceu-se de que Otávio de Saville existia

mesmo, que não era nenhum fantasma. Recebeu a visita do Senhor. Alfredo Humbert,

que, após achá-lo algo abatido, convidou-o para uma ceia, à noite. A tristeza do conde ia

aumentando gradativamente. João, o criado, tomara-o pelo patrão, os amigos de Otávio

também, mas faltava a derradeira prova. A porta abriu-se, e entrou uma senhora de

cabelos grisalhos, muito da com o retrato que se via numa das paredes da sala de estar.

— Como vai o meu querido filho? - perguntou ela, sentando-se no divã. - João disse-me

que você ontem chegou muito tarde, num estado de debilidade que até assustava. Cuidado,

meu filho, sabe quanto o amo, apesar do desgosto que me dá em não querer confiar-me

suas penas.

— Não se impressione, mamãe, estou bem melhor, hoje.

A boa senhora, tranqüilizada, levantou-se e saiu, pois sabia quanto seu filho amava

ficar só.

— Eis-me, então definitivamente, Otávio de Savifie! desabafou o conde, quando a

Senhora de Saville se retirou. - Ninguém reconheceu minha alma neste invólucro. Mas

saberei fugir desta túnica de Nesso! E porque não posso voltar ao meu palácio. Vamos ver

o que há nesta carteira...

Ao abrir a carteira, encontrada no bolso, seu espanto argumentou. Como se encontrava

ali o retrato de sua esposa? Aquela Prascôvia, tão religiosamente amada, teria descido de

seu pedestal para entregar-se a outro? Sentia que a luz da - estava prestes a deixá-lo-ei,

louco de dor e desespero. foi lendo algumas frases que constavam de várias M" que

acompanhavam o retrato, de traços incertos, talvez desenhado de memória.

Jamais ela me amará... li a sentença de morte em meigo olhar... Que infeliz sou eu...

Não posso dormir só em pensar em Prascóvia... Se adormeço, ela me surge, em sonhos,

mais bela que nunca... Ouço espectro invisíveis oficiando a missa fúnebre de meu coração

morto. Ela no paraíso e eu no inferno... Oh, como é aquele estrangeiro. Que sublime vida

anterior houve nele para Deus recompensá-lo desta forma?

Inútil seria ler mais. Estava claro que Prascóvia se conservara fiel. Otávio de Saville

devia ter feito algum pacto com o demônio, para roubar-lhe o amor de Prascóvia o

maneira. A lembrança do demo sugeriu-lhe uma visita ao doutor Baltasar Cherboneau.

O estranho médico estava, como sempre, sentado, de pernas cruzadas, sobre o tapete,

segurando um pé, embebido em suas meditações, alheio às coisas deste mundo. Ao ouvir

passos, levantou a cabeça.

— Oh, é o senhor, meu caro Otávio? Bom sinal quando o doente vem visitar o médico.

— Sabe muito bem que não sou Otávio, mas sim o conde Olaf Labinski, porque ontem,

nesta mesma sala, o senhor roubou-me o corpo, mediante suas exóticas bruxarias! -

retrucou o conde, cego de raiva.

O médico prorrompeu numa gargalhada convulsa, depois disse, secamente:

— Estou vendo que preciso mudar de tratamento, pois a sua melancolia está-se

transformando em loucura.

— Não sei o que me contém que o não estrangule, médico do inferno!

Cherboneau, sorrindo, tocou-lhe o braço com uma varinha. Olaf de Saville recebeu

tamanho choque que lhe pareceu ter partido o braço.

— Oh, nós temos meios de reduzir à impotência os doentes recalcitrantes - disse o

médico, lançando no moço um olhar gelado como as duchas que domam os loucos. - Vá

para casa e tome um banho para acalmar sua super-excitação.

O conde, atordoado pelo choque elétrico, foi procurar o doutor B., em Passy.

— Encontro-me presa de forte alucinação - disse-lhe.

Quando olho para o espelho, meu rosto me parece com traços diferentes... tenho a

impressão de não ser mais eu Mesmo.

— Em que aspecto se vê? O engano pode ser dos olhos ou do cérebro.

— Vejo-me com cabelos negros, olhos azuis, rosto pálido e barba negra.

— É o que o senhor é na realidade.

— Então, que devo fazer? Não estou louco, tenho certeza. Sou o conde Olaf Labinski.

mas, desde ontem, me chamam Otávio de Savilie.

— È exatamente o que penso. Q senhor é Saville e julga-se Labinski. Venha passar

quinze dias em minha clínica. Os banhos, o repouso, o convívio com a natureza,

dissiparão esses fluidos. .

O conde agradeceu e prometeu voltar. Não sabia mais que pensar de seu caso. Ao

reentrar em seu quarto, viu casualmente o convite da condessa Labinski.

— Com este talismã, - murmurou - poderei vê-la amanhã.

Enquanto o conde vivia as torturas do inferno, Otávio de Labinski se encontrava no

paraíso terrestre. Seguiu-se e penetrou no recesso de sua deusa. junto à janela, num

delicioso abandono, cabelos soltos pelos ombros, radiante de viço e beleza, esperava-o

Prascóvia Labinski, numa visão de sonho! Naquela displicência, era ainda mais bela do

que em Florença. Se Otávio não estivesse já louco de amor, teria ensandecido ali. A

angústia saía-lhe à garganta, emudecendo-o. Mas reagiu e adiantavam-se, a passos

resolutos.

— Ah, é você, Olaf? Veio muito tarde, esta noite!

exclamou ela, sem voltar-se, pois a camareira estava ajeitando-lhe as tranças.

— Otávio Labinski apanhou a mão suave como uma flor, que ela lhe estendia, e

imprimiu-lhe um beijo ardente, onde todo o fevor de sua alma.

Não sabemos que instinto de divino pudor, que irracional intuição lhe brotou do

coração, mas a mulher retirou logo a mão, entre pejada e indignada. Os lábios de Otávio

haviam produzido a sensação de ferro em brasa. Entretanto, logo reagiu e sorriu de sua

própria puerilidade. - Você não me responde, caro Olaf. Sabe que já faz mais de seis horas

que o não vejo? - disse,- Nunca me abandonou tanto assim. Pensou em mim, ao menos?

— Sempre - respondeu o moço (e era verdade). Oh, não! Eu sei quando você pensa

deveras em mim. Esta noite, por exemplo, quando eu estava ao piano, percebi sua alma

voejar perto de mim. Por isso, não minta, pois eu adivinho seus pensamentos.

Prascóvia, com certeza, referia-se ao instante em que Olaf lhe evocara a imagem, no

laboratório do médico. Após a saída da camareira, Otávio Labinski ali permaneceu,

seguindo os movimentos de Prascóvia, com olhos acesos. Perturbada, abrasada por aquele

olhar, ela envolveu-se em um peignoir, de onde se via somente sua encantadora cabeça,

ainda desnorteada pela expressão que lia nos olhos do marido, que, ela lembrava, sempre

tinham sido calmos, suaves, inocentes como os dos anjos. Agora, uma paixão terrestre

incendiava aquelas pupilas. E mil hipóteses lhe atravessaram o pensamento. Seria ela,

agora, para Olaf, nada mais que uma mulher vulgar, uma cortesã, desejada apenas pela sua

beleza? A sublime harmonia de suas almas ter-se-ia rompido? A corrupção de Paris teria

afetado aquele coração, que fora sempre tão casto? Um misterioso pavor a possuía, como

se estivesse ante um perigoso desconhecido. Levantou-se, agitada, nervosa, e correu para

seu quarto. Otávio Labinski seguiu-a e cingiu- lhe a cintura, tal como vira Otelo fazer com

Desdêmona. Mas, quando chegaram à porta, Prascóvia virou-se, parou um instante, lançou

no moço um olhar de terror, depois entrou e fechou violentamente, a chave.

— O olhar de Otávio! - murmurou, caindo, semi desfalecida, numa poltrona.

Quando se reanimou, disse entre si: "Como pude ver aquele olhar nos olhos de meu

marido? No entanto, eu o vi, havia neles aquela chama sombria e desesperada... Teria

Otávio morrido? Seria um último adeus de sua alma, antes de deixar este mundo? Olaf,

Olaf, perdoe-me se cedi loucamente a vãos temores! Mas, se o recebesse esta noite, estaria

certa de entregar-me a outro. "

Deitou-se, mas a noite toda foi presa de pesadelos, de sentimentos de angústia, e

somente ao amanhecer conseguiu adormecer. Sempre aqueles olhos ardentes a lançar-lhe

jactos de fogo. O conde Olaf também lhe apareceu, mas era um sonho absurdo, o marido

estava revestido de uma forma estranha.

Não tentaremos descrever a desilusão de Otávio ao dar com a cara na porta. Sua

suprema esperança desmoronava-se! Recorrera às potências infernais, arriscando sua vida

neste mundo e a própria salvação eterna no outro, para conquistar uma mulher, que, afinal,

lhe fugia das mãos. Fora repelido como amante e agora o era, também, como marido. A

soleira do quarto nupcial, ela lhe aparecera qual um anjo fulminando o espírito do mal.

Todavia, não podia permanecer a noite inteira ali, naquela ridícula condição. Procurou o

quarto do conde e caiu no leito, esgotado de tantas emoções que sofrera durante o dia,

amaldiçoando o doutor Baltasar Cherbonneau.

Acordou bem disposto. O criado ajudou-o a vestir-se. E foi a passos tranqüilos que

Otávio Labinski seguiu o camareiro, pois não sabia onde ficava a sala de refeições.

Admirou, de passagem, as armas e os quadros, as várias manifestações de luxo e

esplendor que reinavam no suntuoso palácio. A mesa estava posta à moda russa. Flores,

riquíssima baixela, e dois criados de libré, aos lados, imóveis quais estátuas.

Mal sentara, quando ouviu um passo leve deslizar pelo tapete. Um breve roçagar de

sedas fê-lo voltar a cabeça para trás. Era a condessa Labinski, que entrava. Após um sinal

amistoso, ela sentou-se também. Vestia um penteador de tafetá quadriculado, em verde e

branco, mas seus cabelos de ouro, enrolados em vistosas tranças, davam-lhe o aspecto

nobre de uma escultura grega. Parecia um pouco pálida e uma auréola mal perceptível lhe

circundava os lindos olhos, incutindo-lhe um ar lânguido e cansado. Sua beleza, porém,

assim, era mais penetrante, tinha algo de humano, a deusa se tornava mulher. Otávio

moderou o ardor de suas pupilas, disfarçou seu mudo êxtase com a máscara da

indiferença.

A condessa, sacudindo levemente os ombros, como que desejando repelir um último

calafrio de febre, fixou os belos olhos naquele homem que julgava seu marido, e, com voz

harmoniosa e meiga, plena de carícias, disse-lhe uma frase em polonês. Em Florença, ela.

lhe falara sempre CM francês ou italiano. A idéia de aprender o idioma de Mckiewicz

nunca lhe ocorrera. O pobre enamorado ficou

— Sim, - respondeu o verdadeiro Saville - está louco de amor! Positivamente, condessa

Prascóvia, você é demasiado bela!

Duas horas depois dessa cena, o falso conde recebeu uma carta, com o sinete de Otávio

de Saville. Continha poucas linhas, que denotavam grande nervosismo de parte de quem

as escrevera:

— Lida por qualquer outra pessoa, esta carta poderia parecer vinda do manicômio, mas

o senhor me compreende. Circunstâncias jamais vistas no mundo obrigam-me a escrever a

mim mesmo. De que tenebrosas maquinações eu tenha sido vítima, ignoro-o, mas o

senhor deve saber. E este segredo, se o senhor não for um covarde, vai perguntar-lhe na

ponta do cano de minha pistola. Um de nós dois deve morrer, amanhã. Este vasto mundo é

pequeno para conter-nos a ambos. Eu matarei meu corpo, habitado pelo seu espírito

impostor, ou o senhor matará o seu, onde minha alma se revolta por estar ali presa. Não

tente fazer-me passar por louco, pois, onde eu o encontrar, o insultarei. As minhas

testemunhas irão entender-se consigo, quanto à hora, o local e as condições".

Tal desafio deixou Olaf de Saville perplexo. Repugnava-lhe bater-se contra si mesmo;

ante ser insultado publicamente, resolveu aceitar o duelo. Mas, onde ir buscar suas

testemunhas? Apanhou dois cartões de visita, ao acaso. Eram todos de nobres

estrangeiros, o que atestava a vida nômade de Olaf, que tinha amigos em todos os países.

Apanhou dois, sem escolher. Eram do Marquês de Sepúlveda e do conde Zamoieczki.

Ambos aceitaram a missão.

De sua parte, o falso Otávio também esbarrava com dificuldades, mas, usando a mesma

tática do rival, escolheu Alfredo Humbert e Gustavo Raimbaud, embora estes

estranhassem tal atitude num homem que fazia um ano que vivia recluso.

Quando tudo ficou estabelecido, era quase meia-noite. Otávio bateu de leve à porta do

quarto da esposa, que recusou recebê-lo, aconselhando-o a voltar depois de reaprender a

língua - polonesa.

Na manhã seguinte, o doutor Cherbonneau - veio buscá-lo, em companhia das

testemunhas. Subiram ambos num carro, enquanto o conde e o marques seguiam num

cupê.

— Então, meu caro Otávio, a aventura virou tragédia? - disse o médico - Eu devia ter

deixado o conde dormir uma semana, em meu divã. Mas, sempre nos esquecemos de

algo... E agora, conte-me como a condessa Prascóvía recebeu seu apaixonado de Florença,

em sua transfiguração.

— Creio que me reconheceu, apesar da metamorfose, ou seu anjo da guarda lhe

murmurou algo ao ouvido. Encontrei-a casta e pura como a neve polar. Sinto-me ainda

mais infeliz de quando a visitei pela primeira vez.

— Quem poderá assinalar os limites da alma? - murmurou o médico, pensativo - Ainda

mais quando ela se conserva incontaminada pelo barro humano, tal qual saiu das mãos de

Deus, na luz, na contemplação do amor. Sim, ela o reconheceu, seu instinto a protege.

Tenho pena de si, pobre Otávio, pois seu mal é realmente sem cura. Se estivéssemos na

Idade Média, eu lhe aconselharia o claustro.

— Já pensei nisso.

Tinham chegado. Aquela hora matutina, o bosque apresentava um aspecto pitoresco,

mas a poesia da natureza, em toda a beleza do seu despertar, pouco impressionou os dois

adversários e suas testemunhas. A vista do doutor Cherbonneau causou desagradável

impressão no conde Labinski, que soube, porém, dominar-se.

Mediram as espadas e designaram os lugares dos combatentes, que, em mangas de

camisa, puseram-se em posição de guarda, ponta contra ponta.

— Vamos, senhores! - gritaram as testemunhas.

O duelo começou, mas suas condições eram sobremaneira estranhas para os

adversários, que tinham à sua frente, cada qual, o próprio corpo. Surgiram vários ataques

de parte a parte, bem contidos. O conde, graças à sua educação, era ótimo esgrimista, mas

não contava com um braço firme para obedecer-lhe. Otávio, ao contrário, no corpo, do

conde, sentia um vigor que jamais possuíra.

Olaf lançava golpes ousados, porém Otávio, mais frio e mais calmo, inutilizava-lhe os

esforços. A cólera começava a apoderar-se do conde, que desejava, a todo custo, matar

aquele corpo impostor, mesmo ao preço de permanecer para sempre Otávio de Saville.

Sem meditar no perigo, tentou, num só golpe, atravessar o corpo e a alma do rival, mas

este conseguiu desarmá-lo, atirando-lhe a espada distante.

A vida do marido de Prascávia ficou à mercê de Otávio, que, longe de aproveitar-se dá

oportunidade, também lançou fora sua espada, e, fazendo um sinal às testemunhas, foi até

o conde, que ficara atônito, e levou-o para dentro da mata.

— Por que não me matou? - indagou o conde lá sabe muito bem que o sol não deve

projetar nossas duas sombras na arena e que a terra deverá tragar um de nós.

— Ouça-me com paciência - retrucou Otávio - Sua felicidade está em minhas mãos. Eu

posso guardar para sempre este corpo, que lhe pertence. Se recomeçarmos a luta, eu o

matarei. O conde Olaf Labínski é mais forte do que Otávio de Saville, que o senhor

encarna. Sentirei muito em matá-lo, só em pensar a dor que causaria a minha mãe. Além

disso, já deve saber que, durante três anos, morri de amores pela condessa Labinski, sem

esperança alguma.

— Sim, eu sei... - respondeu Olaf, mordendo os lábios de ódio.

— Pois bem, para chegar até ela, recorri ao doutor Cherbonneau, que realizou, por mim,

uma obra prodigiosa, um milagre de estarrecer todos os taumaturgos do mundo. Após

adormecer a ambos, trocou-nos as almas. Milagre inútil! Prascóvia não me ama. No corpo

do esposo, reconheceu a alma do amante.

Otávio falava com tamanho poder de convicção, e de suas palavras transparecia tanta

mágoa, que o conde ficou comovido e acreditou no que dizia.

— Sou um homem enamorado, mas nunca um ladrão - acrescentou o moço - já que

aquilo que mais desejo na terra não pode pertencer-me, não sei por que continuar de posse

do que é seu. Vamos, dê-me o braço, mostremo-nos reconciliados, agradeçamos às

testemunhas, levemos conosco o medico e retornemos ao laboratório mágico de onde

saímos transfigurados. O velho brâmane saberá bem desmanchar o que fez.

Sustentando ainda seu papel de conde Labinski, Otávio disse às testemunhas:

— Senhores, meu adversário e eu nos reconciliamos. Nada para esclarecer bem as

idéias como cruzar espadas.

Durante o percurso do Boís de Boulogne para a casa do médico, Otávio perguntou a

este:

— Caro doutor, vou pôr à prova mais uma vez sua ciência. Precisa reintegrar nossas

almas em seus respectivos domicílios naturais. Não lhe será difícil, dado seu poder

sobrenatural.

— A operação, desta vez, será mais fácil - concordou Cherbonneau. - Os imperceptíveis

filamentos que ligam a alma ao corpo ainda não tiveram tempo de se reajustarem. O

senhor conde saberá perdoar a um pobre cientista, que não resistiu ao desejo de realizar

uma difícil experiência. Considerem esta metamorfose apenas como um sonho e talvez,

mais tarde, vocês me agradecerão por haverem sentido a estranha sensação de terem sido

alma de dois corpos. A metamorfose é uma ciência antiga, mas, antes de praticá-la, as

almas devem beber da taça do esquecimento, pois nem todos podem, como Pitágoras, se

recordarem de haver assistido à guerra de Tróia.

— O benefício de restituir-me a individualidade equivale ao dano de haver-me

expropriado dela - respondeu gentilmente o conde - Não quero que o Senhor de Saville

leve a mal estas palavras, porém.

Otávio sorriu, mas pensava em suas esperanças frustradas, na sua derrota, e sentia que

os liames da vida se lhe haviam novamente partido. Não desejava infligir a sua boa mãe a

desolação de seu suicídio e procurava um meio de morrer tacitamente. Alma

obscuramente sublime, sabia somente amar ou morrer.

Ao chegarem, o médico conduziu ambos para o recinto Olide fora efetuada a primeira

transformação. Girou o disco da máquina elétrica, agitou as varetas, abriu as bocas do

aquecedor, para aumentar a temperatura, leu algumas linhas dos exóticos papiros e, dali a

minutos, disse aos dois jovens:

— Senhores, estou pronto! Podemos começar?

Enquanto procedia aos preparativos, perturbadoras reflexões assaltavam o cérebro do

conde.

— Quando eu adormecer, que fará de minha alma, esse velho macaco? Não será um

novo ardil? Contudo, a situação não pudera ser pior do que esta. Otávio podia ter-me

morto, e ninguém o acusaria. Pensemos em Prascóvia, e nada de falsos temores. Tentemos

a única solução para reconquistar minha esposa.

E tal como já havia feito Otávio, Olaf também segurou a vareta que Cherbonneau lhe

apresentava. Fulminados pelos condutores metálicos repletos de fluidos magnéticos, os

dois caíram num torpor tão profundo que qualquer um os tomaria por mortos. O médico

cumpriu o ritual, pronunciou as poderosas sílabas e, logo, duas pequenas centelhas

surgiram sobre os dois corpos imóveis, numa luz tremeluzente.

Ele reconduziu à sua primitiva morada a alma de Olaf Labinski, a qual obedeceu, com

um rápido vôo, ao sinal do magnetizador. Mas, a alma de Otávio de Saville ia-se

afastando lentamente do corpo do conde e, ao invés de retornar ao seu próprio, subia,

subia, jubilosa de sentir. se livre, relutando em volver à sua prisão. Baltasar Cher, bonneau

ficou tomado de infinita piedade por aquela Psique, que se debatia, palpitava hesitante, e

perguntou a si mesmo se seria mesmo um beneficio deixá-la neste vale de lágrimas.

Durante aquele minuto, a alma subia sempre e quando o médico, recordando-se de seu

dever, repetiu, com acento misterioso, a palavra mágica e projetou um gesto de comando,

a débil luz trêmula já estava fora de sua esfera de ação. Transpôs o vidro superior da

janela e desapareceu.

Charbonneau cessou os esforços agora já inúteis e acordou Olaf. Este, ao ver-se num

espelho, em seu verdadeiro invólucro, lançou um grito de alegria. Mal olhou para os

despojos de Otávio e saiu correndo, após apertar a mão do médico.

O velho encontrou-se a sós com o cadáver de Otávio.

— Diabos, abri a gaiola e o pássaro fugiu! Deve estar, agora, tão distante deste mundo

que nem o próprio Brama Loguni. o apanharia. E aqui estou eu, com um cadáver nas

mãos ... Poderia dissolvê-lo num banho corrosivo, mas, depois ...

E, aqui, uma ideia luminosa brilhou no espírito do médico. Apanhou uma pena e

escreveu, velozmente, algumas linhas numa folha de papel, que guardou na gaveta da

mesa. Eis o que escrevera:

— Não tendo parentes, nem colaterais, lego todos meus haveres ao Senhor Otávio de

Saville, a quem me liga particular afeição, deixando-lhe apenas a obrigação de pagar a

quantia de cem mil francos ao hospital brâmane de Ceilão, para animais velhos, cansados

ou enfermos, de passar rima renda vitalícia de mil e duzentos francos ao meu servo hindu

e ao meu camareiro inglês e de remeter à Biblioteca Mazarina meu manuscrito das leis de

Manu.

Este testamento, feito por um vivo a favor de um morto, parece uma das mais bizarras

coisas de nossa história, mas logo ela se tornará clara.

O médico tocou o corpo de Otávio de Saville, que o calor da vida ainda não

abandonara. Viu, no espelho, seu rosto velho e rugoso, com ar de supremo desdém, e,

fazendo em si mesmo o gesto de quem atira fora uma roupa velha, murmurou a fórmula de

Brama Logun. Incontinenti, o corpo do doutor Baltasar caiu fulminado no tapete e o de

Otávio se levantou, forte, ágil, vivaz.

Otávio Cherbonneau permaneceu algum tempo contemplando seus magros restos

mortais, ressequidos, ossudos, lívidos, que, não mais escorados pela alma poderosa onde

estiveram até então, exibiam os sinais de uma extrema senilidade e tomaram logo o

aspecto cadavérico.

— Adeus, pobre farrapo humano, mísero invólucro que arrastei, durante setenta anos,

por todas as partes do mundo. Você prestou-me bons serviços e deixo-o com alguma

tristeza. Mas, neste jovem envoltório, que minha ciência saberá tornar robusto, ainda

poderei trabalhar, estudar, ler mais palavras do grande livro, sem que a morte o feche à

página mais atraente, dizendo: Basta!

Depois desta oração fúnebre, dirigida a si próprio, Otávio Cherbonneau saiu

tranqüilamente, para ir tomar posse de sua nova residência.

No dia seguinte, revestido de sua nova -aparência, acompanhou seu antigo corpo ao

cemitério, viu-se enterrar, ouviu, com ar compungido, muito bem simulado, os discursos

que foram pronunciados à beira de sua cova, e nos quais se deplorava a irreparável perda

que sofrera a ciência. Depois, voltou para a Rua São Lázaro, e esperou a abertura do

testamento escrito a seu próprio favor.

Nos vespertinos, entre os faits divers, lia-se: 3

— O doutor Baltasar Cherbonneau, bastante conhecido pela sua longa permanência na

Índia, seus conhecimentos filológicos, suas curas maravilhosas, foi encontrado morto,

ontem, em seu gabinete. O exame minucioso do cadáver eliminou inteiramente qualquer

suspeita de crime. O Senhor Cherbonneau sucumbiu, sem dúvida, devido a excessivos

trabalhos intelectuais, ou, talvez, por causa de alguma audaz experiência.

Dizem que um testamento ológrafo, descoberto na escrivaninha do médico, deixou à

Biblioteca Mazarina preciosos manuscritos e constitui seu herdeiro universal um jovem

pertencente a respeitável família: O Senhor O. de S.".

 

 

 

 

(Théophile Gautier)                         

 

O sonho de habitar um outro corpo fascina pessoas de ideologias completamente diferentes. De religiosos à cientistas, acredito que sempre será grande o interesse em poder livrar-se de seu corpo –o envoltório material da alma- sem precisar, com isso, de deixar de viver.

4

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Un fou? – Guy de Maupassant

Quando me contaram: "Sabe que Jacques Parent morreu numa casa de saúde?", um
doloroso calafrio, um calafrio de medo e angústia me percorreu pelos ossos; e revi
bruscamente, depois de tanto tempo, aquele corpulento e estranho louco, talvez, maníaco
inquietador, medonho mesmo.
Era um homem de quarenta anos, alto, magro, meio curvo, com olhos de alucinado,
olhos negros, tão negros que não se lhe distinguiam as pupilas, móveis, inquietas,
enfermas, angustiantes. Aquele ser singular, perturbador, que emanava, que lançava em
redor de si um vago mal- estar, da alma, do corpo, uma dessas incompreensíveis reações
nervosas que fazem crer em influências sobrenaturais.
Ele possuía um sestro aborrecido: a mania de esconder as mãos. Porque jamais ele as
deixava errar como nós fazemos sobre todos os objetos, em cima das mesas. jamais ele
agarrava as coisas com aquele gesto familiar que todos temos. jamais ele as conservava
nuas, aquelas mãos ossudas, magras, algo febricitantes. 1
Ele as afundava nos bolsos, sob as axilas, ao cruzar os braços. Diziam que receava que
elas praticassem, à sua revelia, algum gesto proibido, que cometessem alguma ação
vergonhosa ou ridícula, caso as deixasse livres em seus movimentos.
Quando era obrigado a servir-se delas, para os usos comuns da vida, fazia-o por
movimentos bruscos, rápidos impulsos dos braços, como se não lhes quisesse dar tempo
de agir por si próprias, de fugirem à sua vontade, de executarem outros movimentos. À
mesa, servia-se do copo, do garfo ou da faca tão rapidamente que nunca se tinha tempo de
prever o que iria fazer antes que ele completasse o gesto.
Então, certa noite, tive a explicação da surpreendente doença de sua alma.
Ele vinha passar, de tempos em tempos, algum dia comigo no campo, e, naquela noite,
apareceu-me particularmente agitado.
Uma tempestade desenhava-se no céu, abafado e negro, depois de um dia de calor
atroz. Nenhum sopro de ar movia as folhas. Um calor de forno oprimia os rostos, fazendo
os peitos ofegarem. Eu me sentia mal, agitado, e desejava ir para a cama.
Quando percebeu que me levantava para sair, Jacques Parent segurou, me pelos braços,
num gesto sobressaltado.
— Oh, não, fique mais um pouco! - exclamou.
Fitei-o com surpresa, e murmurei:
— Essa tempestade próxima abala-me os nervos.
Ele gemeu, ou melhor, berrou:
— E a mim, então? Oh, fique, rogo-lhe, pois não posso estar sozinho!
Pareceu-me desvairado.
Perguntei-lhe:
— Que tem você? Perdeu a cabeça?
— Sim, em alguns momentos, como em noites assim, noites plenas de eletricidade. . .
eu tenho... eu tenho... tenho medo... tenho medo de mim mesmo ... Não me compreende?
É que sou dotado de um poder ... não, de uma potência... de uma força... Enfim, não sei
explicar o que seja, mas existe em mim uma ação magnética tão extraordinária que me
apavora, que me faz temer a mim mesmo, como lhe disse há pouco.
E, ao falar, sentia estranhos arrepios, suas mãos vibravam, ocultas, por baixo do paletó.
E eu mesmo me senti logo invadido de um temor confuso, poderoso, horrível. Tive
vontade de partir, salvar-me, de nunca mais vê-lo, de jamais tornar a ver aqueles olhos
errantes pousarem em mim, e depois se afastarem, fixarem-se no teto, à procura de algo,
de algum canto sombrio onde se firmarem, como se ele quisesse ocultar, também, seu
temível olhar.
Balbuciei a custo:
— Você nunca me disse isso.
E ele retrucou:
— E quer que conte isso a qualquer um? Vamos, ouça, esta noite não mais me posso
calar. E apraz-me, realmente, que você fique sabendo de tudo. Sim,- até poderá socorrer-
me, se for preciso.
— O magnetismo! Sabem lá o que é? Não. Ninguém o sabe. Todavia, o constatam.
Reconhecem-no os próprios médicos, que o praticam. Um dos mais ilustres, Charcot,
professa-o; então, sem dúvida, existe.
Um homem, um ser, possui o poder terrível e incompreensível de adormecer, com a
força de sua vontade, outro ser, e, durante o sono deste, rouba-lhe o pensamento, ou
melhor, sua alma; a alma, esse santuário, esse recesso do Eu, a alma, esse segredo que o
homem julga impenetrável, a alma, esse refúgio dos indecifráveis pensamentos, de tudo
que ocultamos, de tudo quanto amamos, de tudo que desejamos furtar aos olhos humanos.
E ele a abre, viola-a, escancara-a, mostra-a em público! Não é isso atroz, .criminoso,
infame?
— Porque, como se pode fazer tal coisa? Quem poderá sabê-lo?
Tudo é mistério. Nós não nos comunicamos com as coisas senão por meio de nossos
miseráveis sentidos, incompletos, frágeis, tão débeis que mal têm o poder de verificar o
que nos rodeia. Tudo é mistério. Pense na música, essa arte divina, essa arte que nos
arrebata a alma, que a transporta, que a embriaga, que a enlouquece; e que e ela, então?
Nada!
Você não me compreende? Ouça. Dois corpos se chocam. O ar vibra. Essas vibrações
são, mais ou menos, numerosas, mais ou menos rápidas, mais ou menos fortes, segundo a
natureza do choque. Agora, nós temos no ouvido uma pequena membrana, que recebe
essas vibrações do ar e as transmite ao cérebro, em forma de som. Imagine que um copo
de água se transforme em vinho em sua boca. O tímpano realiza essa incrível
metamorfose, esse surpreendente milagre de transformar o movimento em som. E isso é
tudo.
A música, essa arte complexa e misteriosa, exata como a álgebra e vaga como um
sonho, essa arte feita de matemáticas vibrações, resulta, portanto, da estranha propriedade
de uma membrana. Se não existisse essa membrana, o som também não existiria. porque
ele, em si, não passa de uma vibração. Sem o ouvido, se tornaria ele em música? Não!
Pois bem, nós somos rodeados de coisas que Jamais perceberemos, porque nos faltam os
órgãos necessários que no-las revelem.
O magnetismo pode ser uma dessas coisas, talvez. Nós não podemos senão pressentir-
lhe o poder, mal tentamos timidamente sentir a proximidade dos espíritos, sem poder
explicar esse novo segredo da natureza, porque não possuímos o instrumento revelador.
Quanto a mim - Quanto a mim, sou dotado de um poder espantoso. Dir-se-ia haver
outro ser encerrado em mim, que deseja, sem cessar, evadir-se, agir à minha revelia, um
ser que se move, que me rói, que me possui. Quem é ele? Nada sei, mas somos dois em
meu pobre corpo, e é ele, o outro, que freqüentemente é o mais forte, como acontece esta
noite.
Basta-me apenas olhar para as pessoas para adomecê-las. como se lhes houvesse
ministrado ópio. Basta-me estender as mãos para produzir coisas... coisas horríveis. Você
quer saber? Sim, você quer saber! Meu poder estende-se não só sobre os homens mas
também sobre os animais e, mesmo... sobre os objetos.
E isso me atormenta e me apavora. Quantas vezes me assaltou o desejo de vazar os
olhos e decepar as mãos!
Mas eu quero... quero que você saiba de tudo! Venha! Vou mostrar-lhe aquilo... não
sobre criaturas humanas, que isso todos sabem fazer, vê-se: em toda parte, mas sobre...
sobre... um animal.
Chame Mirca!
Ele caminhava a passos largos, feito um alucinado, e suas mãos saíram dos bolsos. Elas
surgiram assustadoras, como se ele houvesse desnudado duas espadas.
Eu lhe obedecia maquinalmente, subjugado, vibrando de terror, mas devorado por uma
espécie de desejo impetuoso de ver, de saber. Abri a porta e assobiei para minha cadela,
que dormia no vestíbulo. Ouvi-lhe logo o raspar das unhas junto às escadas e ela surgiu
alegre, balançando o rabo.
Em seguida, fiz-lhe sinal para deitar-se numa poltrona; ela obedeceu e Jacques
começou a olhar para ela, afagando-a.
A princípio, a cadela parecia inquieta: estremecia, virava a cabeça. a fim de evitar o
olhar fixo do homem, tomada de um medo sempre crescente. De repente, principiou a
tremer, como tremem os cães. Todo seu corpo palpitava, sacudido de longos arrepios, e
quis fugir dali. Mas Jacques pousou a mão sobre o crânio do animal, que emitiu, ao ser
tocado, um desses longos uivos que se ouvem à noite pelos campos.
Sentei-me, também assustado, estarrecido, tanto, como se estivesse enjoando a bordo
de um barco em mar agitado. Eu via os móveis caindo, moverem-se pelas paredes. E
gaguejei:
— Chega, Jacques, chega!
Mas ele não mais me escutava, olhava para Mirza com um olhar fixo, contínuo,
assustador. Ela cerrou os olhos enquanto deixava tombar a cabeça como se houvesse
adormecido. Jacques olhou para mim.
— Está feito, agora você já viu.
E, atirando seu lenço para o outro lado do quarto, gritou:
— Traga-mo!
O animal então se levantou e, tropeçando, cambaleando, como se estivesse cego,
mexendo suas patas a custo, como os paralíticos fazem com suas pernas, seguiu na direção
do lenço, que parecia uma mancha branca no chão. Ela tentou várias vezes pegá-lo na
boca, mas mordia aos lados, sem atingi-lo, como se não o visse. Afinal alcançou-o e
voltou para nosso lado, sempre . parecendo um cão presa de sonambulismo.
Era um espetáculo horrível de ver. Jacques ordenou:
— Deite-se!
Ela deitou-se. Então, ele lhe tocou a testa e disse:
— Uma lebre! Pega, pega!
— E o animal, sempre de lado, tentou correr movendo-se como se estivesse dormindo,
e emitiu, sem abrir muito a goela, pequenos latidos de ventríloquos.
Jacques parecia ter enlouquecido. O suor jorrava-lhe da testa. Gritou:
— Morda, morda seu patrão!
A cadela teve dois ou três terríveis sobressaltos. Eu teria jurado que ela estava
resistindo à ordem, que relutava. Ele repetiu:
— Morda-o!
Então, levantando-se, a cadela veio para meu lado. e eu recuei para junto da parede,
fremindo de medo, o pé levantado para repeli-la.
Mas Jacques ordenou:
— Aqui, depressa!
Ela obedeceu-lhe. Então, com suas mãos enormes, ele pôs-se a esfregar a cabeça do
animal, parecendo desembaraçá-lo de invisíveis liames.
Mirza reabriu os olhos:
— Pronto, está acabado, - disse Jacques.
Não ousei sequer tocá-la, e enxotei-a até à porta, por onde saiu. Caminhava lentamente,
insegura, esgotada, e ouvi suas unhas novamente arranharem o chão.
Jacque; dirigiu-se a mim novamente:
— E isso não é tudo. O que mais me espanta, eis aqui, tome! Os objetos me obedecem
também.
Ele tinha posto sobre a mesa uma espécie de corta, papel, de que me servia para cortar
as páginas dos livros. Estendeu a mão para o objeto, que parecia rastejar, aproximando-se
lentamente; e de súbito eu vi, sim, o corta- papel estremecer, depois agitar-se, deslizar
suavemente, sozinho, sobre a madeira, rumo à mão que o aguardava, colocando-se-lhe
entre os dedos.
Pus-me a gritar de terror. Também acreditei ter enlouquecido, mas o agudo de minha
voz logo me acalmou.
Jacques recomeçou:
— Todos os objetos vêm, assim, à minha ordem. É por isso que oculto as mãos. Que
será isso? Magnetismo, eletricidade, ímã? já não sei mais nada, porém, isso é horrível.
E compreende você, também, por que é horrível? Quando estou só, assim que me
encontro só, não posso impedir-me de atrair tudo quanto me rodeia.
E passo dias inteiros mudando as coisas de lugar, não deixando nunca de experimentar
esse abominável poder, como para verificar se ele não me deixou!
Ele havia metido de novo suas enormes mãos nos bolsos e olhava para as trevas, além
da vidraça. Um pequeno ruído, um leve movimento pareceu sacudir a folhagem, por entre
o arvoredo.
Era a chuva que começava a cair.
Murmurei:
— É espantoso!
Fie acrescentou:
— É horrível.
Um estrondo percorreu a folhagem, semelhante a uma rajada de vento. Era o aguaceiro,
a pancada d'água, chovia torrencialmente.
Jacques começou a respirar a plenos pulmões, soerguendo o tórax.
— Deixe-me, - disse - a chuva vai acalmar-me. Neste momento, desejo ficar só.
( Un Fou – Guy de Maupassant )


No começo do conto, Jacques Parent é descrito como um indiívuo louco, socialmente desajustado, habituado a atos ilógicos e não-convencionias:
Quando era obrigado a servir-se delas, para os usos comuns da vida, fazia-o por
movimentos bruscos, rápidos impulsos dos braços, como se não lhes quisesse dar tempo
de agir por si próprias, de fugirem à sua vontade, de executarem outros movimentos. À
mesa, servia-se do copo, do garfo ou da faca tão rapidamente que nunca se tinha tempo de
prever o que iria fazer antes que ele completasse o gesto.
Ao ler este trecho pensamos naturalmente que não faz nenhum sentido agir reprimindo os movimentos das mãos. Afinal, nós sabemos que temos total controle não somente sobre nossas mãos, mas sobre todo nosso corpo. Não é?
Então, certa noite, tive a explicação da surpreendente doença de sua alma.
Atenção para a concepção de que ‘ser diferente’ de todos, é tido como doença. Porém, até não muito tempo atrás, os ‘loucos’ eram tidos como portadores de poderes. Seja algo sobre o futuro de seus próximos, seja uma sensibilidade mais aguçada – como é o caso de muitos pintores, atores e músicos especialmente. No conto, este fato não é deixado de lado, e o próprio Jacques sabe-se (ou acredita-se, o que é a mesma coisa aqui) poderoso.
É que sou dotado de um poder ... não, de uma potência... de uma força... Enfim, não sei
explicar o que seja, mas existe em mim uma ação magnética tão extraordinária que me
apavora, que me faz temer a mim mesmo, como lhe disse há pouco.
E, ao falar, sentia estranhos arrepios, suas mãos vibravam, ocultas, por baixo do paletó.
A possibilidade de entender e até mesmo manipular os pensamentos humanos é vista com bastante receio. E esse é um ponto importante no conto, pois é ao redor dele que a narrativa se desenrola.
Um homem, um ser, possui o poder terrível e incompreensível de adormecer, com a
força de sua vontade, outro ser, e, durante o sono deste, rouba-lhe o pensamento, ou
melhor, sua alma; a alma, esse santuário, esse recesso do Eu, a alma, esse segredo que o
homem julga impenetrável, a alma, esse refúgio dos indecifráveis pensamentos, de tudo
que ocultamos, de tudo quanto amamos, de tudo que desejamos furtar aos olhos humanos.
E ele a abre, viola-a, escancara-a, mostra-a em público! Não é isso atroz, .criminoso,
infame?
A concepção equivocada de que temos um ‘eu’ unificado, quase esférico, que não se altera, que não nos foge ao controle que podemos melhor que ninguém conhecer ‘nós mesmos’ também é posta à prova por Maupassant:
Quanto a mim - Quanto a mim, sou dotado de um poder espantoso. Dir-se-ia haver
outro ser encerrado em mim, que deseja, sem cessar, evadir-se, agir à minha revelia, um
ser que se move, que me rói, que me possui. Quem é ele? Nada sei, mas somos dois em
meu pobre corpo, e é ele, o outro, que freqüentemente é o mais forte, como acontece esta
noite.
Daqui em diante o conto tem seu clímax e logo o desfecho nos explica o título ‘Un Fou?’ (Um Louco?). Poderia um homem com tais poderes ser considerado louco? O que é, afinal de contas, ser louco? Você, que chama o outro de louco, está totalmente certo ao se pensar são?

Um pouquinho mais de Guy de Maupassant. 2