quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ciumento de Carteirinha

Fissurado que fiquei com todas as possibilidades de Dom Casmurro, acabei sendo apresentado a uma obra muito mais recente, porém igualmente clássica no assunto: ciúmes.



Contra-capa:
“O ciúme pode levar um sujeito à loucura. Vejam só o caso de Francesco: ele e mais três amigos se inscreveram em um concurso em torno do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Os competidores devem julgar a enigmática Capitu, personagem do livro, com argumentos que comprovem ou desmintam as suspeitas de traição nutridas por Bentinho, seu marido. A história cala fundo em Francesco, pois parece que Júlia, sua namorada e parceira de equipe, resolveu dar uma de Capitu, demonstrando interesse por outro colega. Identificado com Bentinho, Francesco decide incriminar Capitu, nem que seja forjando uma prova falsa.”


O livro traz uma mensagem clara e muito direta: "Traiu ou não traiu?" não é importante; é apenas a atração do livro, não deve ser a única preocupação do leitor. Até aí eu também tinha conseguido deduzir. Mas, o que era importante, então? Algo que, para quem lê Dom Casmurro na primeira vez, talvez não seja tão claro é o fato de a mensagem do autor tratar não da questão da traição, mas antes dos efeitos negativos do ciúme.
Já em Ciumento de Carteirinha essa mensagem é muito explícita e nos faz refletir sobre o Dom Casmurro.
Ouso dizer até que, independente de Bentinho ter sido ou não traído, se não houvesse sido envenenado pelo monstro do ciúme, não teria feito por merecer o apelido de Casmurro, homem capaz de rejeitar até a poesia. Ironia de Machado, seria através da figura do poeta do início da história,logo no primeiro capítulo, que alertaria às pessoas para que não rejeitassem sua mensagem que dizia que o ciúme é um inimigo poderosíssimo e que, caso o deixasse controlar suas vidas, acabariam como Casmurros solitários e tristes.

“Essa discussão, Capitu “traiu ou não traiu”, no fundo não tem muita importância. É um jogo que o Machado faz com os leitores, um jogo ao qual o Brasil inteiro acabou aderindo. Como tema de concurso pode até ser válido; se vocês ganharem o prêmio e puderem arrumar a escola com o dinheiro, será mais válido ainda. Agora, o que tem importância mesmo, no livro, é o ciúme do Bentinho. Machado mostra como esse homem acabou sendo dominado pela suspeita; a vida dele passou a girar em torno disso.
Ficou um instante em silêncio. Aparentemente, hesitava em me dizer algo, algo que era para ele muito importante, mas penoso. Engoliu em seco e por fim foi em frente:
-Você sabe, Queco, que eu me separei de minha mulher. Um dia ela me disse que tinha encontrado outro homem, e que gostava dele, e que queria viver em sua companhia. Foi um choque. A gente estava casado há cinco anos, mas depois de pensar muito decidi aceitar aquilo como fato consumado: seria melhor para todos. Nós nos separamos como amigos, e amigos continuamos. Se eu tivesse me deixado dominar pelo ressentimento, minha vida, e a vida da mina ex-mulher, teriam se tornado um inferno. Mas a gente tem de agir com equilíbrio, com maturidade. E é isto que eu lhe peço, Queco. Peço-lhe como seu professor, como seu amigo; amigo mais velho, mas amigo. Por favor, não transfira para a sua vida particular os problemas que o Betinho teve com Capitu. Promete?
Não prometi. Estava muito magoado para fazê-lo. Gostava do Jaime, gostava muito dele, faria qualquer coisa que me pedisse, menos aquilo. Além disso, e apesar de suas boas intenções, ele estava enganado. Minha bronca com a Júlia não se resumia a um debate sobre o Dom Casmurro, ou sobre o que a Capitu tinha feito na realidade. Eu achava era que a Júlia estava me sacaneando, estava me traindo. Queria me vingar, e levaria a vingança até o fim. O meu voto era importante? Pois então eles não teriam o meu voto. Se isso arrebentasse o nosso grupo, se isso se tornasse um obstáculo para o nosso trabalho, azar. A mim pouco importava.”
( Capítulo 8 - Guerra é Guerra; Ciumento de Carteirinha-Moacyr Scliar. Pág. 75 )





Moacyr Scliar é, ao contrário de Machado de Assis-um realista, um escritor otimista. O final feliz do livro, na minha opinião tirou um pouco da graça. Mas vá lá, o recado já estava dado.


Moacyr Scliar - Bastidores da Criação
“Machado de Assis é o grande guru dos escritores brasileiros. Dom Casmurro é sem dúvida o mais popular de seus livros. Em primeiro lugar fala de uma coisa universal, pela qual todos passamos em algum momento de nossas vidas: o ciúme. E o faz por meio de uma história realista, comovente, muito brasileira – Machado retrata com perfeição a sociedade de seu tempo. Finalmente temos o jogo que o autor estabelece com o leitor, deixando o final em aberto: Capitu traiu ou não traiu? É uma dúvida que até hoje provoca muita discussão. E foi exatamente essa dúvida que me serviu de ponto de partida para o livro.
Eu queria escrever uma obra inspirada em Dom Casmurro, mas com personagens da atualidade, gente como os jovens leitores com quem frequentemente converso em escolas. Ora, concursos em colégios é coisa comum e debates sobre Dom Casmurro acontecem a todo instante. Aos poucos a história foi surgindo em minha cabeça. É uma história que tem basicamente quatro personagens, como o próprio livro do Machado, só que agora se trata de estudantes. Mais: um deles, Queco, também se vê, como Bentinho, às voltas com o ciúme. E, como às vezes acontece com ciumentos, ele perde o controle sobre suas próprias emoções, envolvendo-se numa grande confusão.
Em tudo isso há uma lição importante: precisamos conhecer a nós mesmos. Precisamos saber quando estamos agindo de maneira racional e quando somos movidos por impulsos que não conseguimos controlar. Isso foi o que aconteceu com Bentinho e, no livro de Machado, vemos o resultado: ele acaba sozinho. Isso não é bom pra ninguém. Uma lição que a gente deve aprender muito cedo, na infância, na juventude. É a mensagem que tentei transmitir, e que constitui numa homenagem aos jovens leitores e ao grande Machado de Assis.”

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Dom Casmurro



O mal do nosso século é o romantismo.
As pessoas esperam viver como as personagens das novelas, onde tudo é lindo - e fantasioso. A arte é a mentira que torna a vida suportável, disse Nietzsche. Mas deve-se saber identificar as diferenças entre a realidade e a ficção à fim de não se cair nas armadilhas que essa confusão pode causar.
Ao encontrar um companheiro, jovens (seja em idade ou em espírito, refiro-me aqui aos que não alcançaram ainda a maturidade e conseqüentemente o discernimento entre o que deve-se viver cruamente e o que deve-se distorcer para deixar a vida suportável) esperam deste proezas só possíveis em contos de fadas. Esperam cavalos brancos, longas tranças loiras como o próprio ouro, juras de amor e cabeças de dragões à seus pés. Quando se fantasia a realidade não se pode alcançar o que se espera sem que se tenha alcançado apenas uma ilusão. A única coisa ruim de uma mentira é não ser verdade. Deve-se saber mentir, mas, antes de tudo deve-se saber que se está a mentir.
Machado de Assis já sabia disto muito bem e, ao criticar o romantismo, ele nos dá uma luz dessa mesma idéia. Machado é filosofia - para quem quiser tê-la-, ou puro romance de folhetim -para as 'queridas leitoras' despretensiosas.


Capitu olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definição de José Dias, oblíquo e dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os olhos. A voz, um tanto sumida, perguntou-me:
--Diga-me uma cousa, mas fale verdade, não quero disfarce; há de responder com o coração na mão.
--Que é? Diga.
--Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia?
-- Eu?
Fez-me sinal que sim.
--Eu escolhia... mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me perguntar isso.
--Pois sim, mas eu pergunto. Suponha você que está no seminário e recebe a notícia de que eu vou morrer...
--Não diga isso!
-- ...Ou que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não quiser que você venha, diga-me, você vem?
--Venho.
--Contra a ordem de sua mãe?
--Contra a ordem de mamãe.
--Você deixa seminário, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer?
--Não fale em morrer, Capitu!
Capitu teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no chão, inclinei-me e li: mentiroso. ”







Mais uma vez procurei um clássico para me distrair do tédio. Encontrei Dom Casmurro em alguma das minhas anotações de 'próximas leituras recomendadas' e carreguei o celular com o texto cheio de malícia e duplos-sentidos. O tédio felizmente não me perturbou durante o carnaval e o livro acabou ficando pra depois do feriado, lido com 9 horinhas. Pequeno e rápido, tipo de livro que me atiça para segundas ou mais leituras.


Dom Casmurro foi publicado em 1900 e é um dos romance mais conhecidos de Machado de Assis. Narra em primeira pessoa a estória de Bentinho que, por circunstância várias, vai se fechando em si mesmo e passa a ser conhecido como Dom Casmurro. Sua estória é a seguinte: Órfão de pai, criado com desvelo pela mãe (D. Glória), protegido do mundo pelo círculo doméstico e familiar (tia Justina, tio Cosme, José Dias), Bentinho é destinado à vida sacerdotal, em cumprimento a uma antiga promessa de sua mãe.
A vida do seminário, no entanto, não o atrai, já o namoro com Capitu, filha dos vizinhos... Apesar de comprometida pela promessa, também D. Glória sofre com a idéia de separar-se do filho único, interno no seminário. Por expediente de José Dias, o agregado da família, Bentinho abandona o seminário e, em seu lugar, ordena-se um escravo.
Correm os anos e com eles o amor de Bentinho e Capitu. Entre o namoro e o casamento, Bentinho se forma em Direito e estreita a sua amizade com um ex-colega de seminário, Escobar, que acaba se casando com Sancha, amiga de Capitu.
Do casamento de Bentinho e Capitu nasce Ezequiel. Escobar morre e, durante seu enterro, Bentinho julga estranha a forma qual Capitu contempla o cadáver. A partir daí, os ciúmes vão aumentando e precipita-se a crise. À medida que cresce, Ezequiel se torna cada vez mais parecido com Escobar. Bentinho muito ciumento, chega a planejar o assassinato da esposa e do filho, seguido pelo seu suicídio, mas não tem coragem. A tragédia dilui-se na separação do casal.
Capitu viaja com o filho para a Europa, onde morre anos depois. Ezequiel, já moço, volta ao Brasil para visitar o pai, que apenas constata a semelhança entre e antigo colega de seminário. Ezequiel volta a viajar e morre no estrangeiro. Bentinho, cada vez mais fechado em suas dúvidas, passa a ser chamado de casmurro pelos amigos e vizinhos e põe-se a escrever de sua vida (o romance).



Em Dom Casmurro, encontramos a dúvida sobre a existência do adultério de Capitu, não havendo nenhum momento que o comprove, permanecendo apenas como suspeitas. Sendo escrito em primeira pessoa, apresenta apenas a interpretação dos fatos presenciados pelo narrador-personagem, não apresentando em nenhum momento outras visões. O fato de o autor escrever o romance em capítulos curtos, com títulos explicados posteriormente e de utilizar citações de obras importantes e personagens históricos, em frases curtas, facilita a leitura e prende o leitor.
Machado de Assis permite, ao deixar o final com uma questão em aberto, que um mesmo leitor retome o livro e tire diferentes conclusões a cada vez que o releia. Porém, a questão principal do livro não é essa. Machado escreve sobre a suposta traição para que o leitor se distraia, e só os mais atentos percebam que o assunto principal da obra é a análise social da sociedade burguesa brasileira do século XIX. Para isso, Machado trabalha um micro cosmo - Casa de D. Glória- para refletir sobre o macro cosmo - a sociedade. Assim, cada habitante da casa representa um tipo social da época.


Quando Bento vai mudar da casa de sua mãe, na Rua de Matacavalos, para a Praia da Glória, ele constrói uma casa idêntica aquela em que viveu desde criança, colocando inclusive quatro medalhões de quatro imperadores notórios na sala de estar: Nero, Augusto, Massinissa e César que, segundo Bento, o sugerem a escrita do romance.
Os imperadores possuem algo muito interessante em comum: acusaram suas mulheres de adultério e mataram-nas, mesmo sabendo que elas eram inocentes. César disse: " minha mulher não basta ser inocente, ela tem que parecer inocente". Isso nos dá mais uma pista sobre a suposta traição no romance.

"Até hoje é motivo de aceso debate se Capitu traiu ou não o marido com seu melhor amigo, Escobar. A questão, no fundo, é irrelevante, pois para entendermos o perfil psicológico de Bentinho, basta sabermos que ele acredita ter havido adultério.
Também é irrelevante se o fato que desencadeou o ciúme - a forma intensa com que Capitu fitava Escobar no velório deste, perturbando Bentinho a ponto de impedi-lo de pronunciar o discurso fúnebre – ocorreu na realidade ou apenas existiu na imaginação do personagem.
No despertar do ciúme, teve papel certamente preponderante o sentimento de culpa que carregava Bentinho por não cumprir a promessa de sua mãe, de tornar-se padre e daí o ressentimento inconsciente contra Escobar, que o ajudara a dissuadir a mãe de seu intento, permitindo seu casamento com Capitu.
A culpa e o ressentimento eram tão fortes que Bentinho esteve a ponto de suicidar-se. Não o fez e depois de ter perdido a mulher e humilhado a ela e ao filho, se tornou o Dom Casmurro do título."
( Ciúme na Literatura - Wikipédia )

Agora, aos comentários e observações pessoais sobre a leitura:

E depois, de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou resumir.
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passa do sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, e acaso para reconciliar-se com o céu,--compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
--Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés...
--Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
--Mas, Senhor...
--Nada! nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
--Ouvi agora alguns ensaios!
--Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a além da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Aden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem c mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.
--Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: "Muitos são os chamados, poucos ao escolhidos". Deus recebe eu ouro, Satanás em papel.
--Tem graça...
--Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia. quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver algum, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...
(CAPÍTULO IX / A ÓPERA )

Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo.
Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador! toda a gente chegava as janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança: "O Imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? Que não será?" A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, --não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos,--pedia a minha mãe que me não fizesse padre, -- e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não.
--A medicina, por que lhe não manda ensinar medicina?
--Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade..
--Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias. combatê-las, vencê-1as... A senhora mesma há de ter visto milagres Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira: mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?
-- Mamãe querendo.
-- Quero, meu filho. Sua Majestade manda.
Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro: o Imperador entrava no coche. inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: "A medicina, a nossa Escola." E o coche partia entre invejas e agradecimentos.
Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros.


Terás entendido que aquela lembrança do Imperador acerca da medicina não era mais que a sugestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações. Vá que fosse para S. Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitu.
( CAPÍTULO XXIX / O IMPERADOR e CAPÍTULO XXX / O SANTÍSSlMO )


- Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada." Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e disse-lhe,--para dizer alguma cousa,--que era capaz de os pentear, se quisesse. ”
(CAPÍTULO XXXII / OLHOS DE RESSACA )

Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico.”
(CAPÍTULO XIXI / O PENTEADO)
Aqui há uma singela intertextualidade com Lolita, de Nabokov. Singela, porém compensadora aos que já tiveram a oportunidade de conhecer o universo que este outro autor apaixonado pela beleza das ninfas nos deixou.
Alguém certo dia disse que as grandes obras só podem ser percebidas como tais quando passamos a perceber todos os seus detalhes minuciosos e por isso mesmo engrandecedores. Seja a intertextualidade, sejam referências simples, que passariam despercebidas aos menos atentos, depois de ler tal afirmação, passei a procurar com muito mais afinco detalhes que antes me passavam despercebidos. Tenho me disciplinado para reaprender a ler, ou pelo menos tentado. De qualquer forma, desde então, ler tornou-se para mim ainda mais gratificante.
O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça consigo mesma, uma vez que, desde manhã, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça, e, para dizer tudo, quis provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe levemente na mão direita, depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e trêmulo. Era a idéia com mãos. Quis puxar as de Capitu, para obrigá-la a vir atrás delas, mas ainda agora a ação não respondeu à intenção. Contudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava ninguém- não vivia com rapazes, que me ensinassem anedotas de amor. Não conhecia a violação de Lucrécia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela artinha do Padre Pereira e eram patrícios de Pôncio Pilatos. Não nego que o final do penteado da manhã era um Brande passo no caminho da movimentação amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrário deste. De manhã, ela derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os lances diferiam; em outro ponto, parecendo haver repetição, houve contraste.
Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro, começava a estar tão alvoroçado, que não pude ter toda a consciência dos meus atos; mas concluo que sim, porque ela recuou e quis tirar as mãos das minhas; depois, talvez por não poder recuar mais, colocou um dos pés adiante e o outro atrás, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabeça não quis ceder também, e caída para trás, inutilizava todos os meus esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo a lição do Cântico, não me acudiu estender a mão esquerda por baixo da cabeça dela; demais, este gesto supõe um acordo de vontades, e Capitu, que me resistia agora, aproveitaria o gesto para arrancar-se à outra mão e fugir-me inteiramente. Ficamos naquela luta, sem estrépito, porque apesar do ataque e da defesa, não perdíamos a cautela necessária para não sermos ouvidos lá de dentro; a alma é cheia de mistérios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar; até que cansou; mas então foi a vez da boca. A boca de Capitu iniciou um movimento inverso, relativamente à minha, indo para um lado, quando eu a buscava do outro oposto. Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e bastaria um pouco mais... ”
(CAPÍTULO XXXVII / A ALMA É CHEIA DE MISTÉRIOS)

A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente.
(CAPÍTULO LXVI / INTIMIDADE )

Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rebeca e não tocava inteiramente mal. Na ocasião em que ia passando, executava não sei que peça. Parei na calçada a ouvi-lo (tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me, e continuou a tocar. Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram, a despeito da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras à navalha. Perdeu-os sem perder uma nota- ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar francamente à porta da loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o interior da casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor no cabelo. Era a mulher dele, creio que me descobriu de dentro, e veio agradecer-me com a presença o favor que eu fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizê-lo com os olhos. Quanto ao marido, tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face ao instrumento, passava a alma ao arco, e tocava, tocava...
Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei pelo corredor e subi as escadas sem estrépito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta máxima, que os compiladores podem tirar daqui e inserir nos compêndios de escola. A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu duas barbas naquela noite, que eram o pão do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um transeunte. Supõe agora que este, em vez de ir-se embora, como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a enamorar-lhe a mulher, então é que ele, todo arco, todo rebeca, tocaria desesperadamente. Divina arte! ”
( CAPÍTULO CXXVII / O BARBEIRO )

Outra intertextualidade interessante foi percebida entre o capítulo que Machado de Assis chama de O Barbeiro e o conto O Moço do Saxofone, de Lygia Fagundes Teles. Em ambos os textos a atitude aparentemente passiva e até mesmo comovente do homem enganado pela mulher nos salta aos olhos e nos faz pensar sobre a traição.

'Dica' final do livro:
Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti.
(CAPÍTULO CXLVIII / E BEM, E O RESTO? )

A Rede Globo produziu uma adaptação tosca, porém muito comercial de Dom Casmurro. O resultado ficou estranho, e provavelmente os espectadores que não sabem quem foi Machado de Assis não entenderam nada da história.
Porém, na minha opinião, a principal falha da microssérie Capitu é a falta da ambiguidade do texto machadiano. Assistindo somente à versão da Globo deduz que Capitu traiu e pronto, há uma parcialidade e uma presunção desagradáveis. Todo o mistério instigante da obra é deixado de lado, o que deixa grande parte da grandiosidade da obra oculto.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Lolita

LOLITA
Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade. Meu pecado, minha alma. Lo-li-ta: a ponta da língua faz uma viagem de três passos pelo céu a Boca abaixo e, no terceiro, bate nos dentes. Lo. Li. Ta.
Pela manhã, um metro e trinta e dois a espichar dos soquetes; era Lo, apenas Lo. De calças práticas, era Lola. Na escola, era Dolly. Era Dolores na linha pontilhada onde assinava o nome. Mas nos meus braços era sempre Lolita.





Lolita é uma história de amor trágico entre um homem de 35 anos (Humbert Humbert, embora este nome seja um pseudônimo) e uma rapariga de 12 anos, fascinada pelo cinema e que quer um dia ser atriz, Lolita. A narrativa é-nos dada por Humbert, que narra o período da sua vida em que conheceu e amou Lolita, não sem antes nos dar conta das suas anteriores experiências amorosas na Europa. Estas anteriores experiências de Humbert, um gentleman inglês que chega à América com o intuito de dar aulas e pôr termo a uma vida desgraçada na Europa, são importantes para estabelecerem um padrão de comportamento da personagem: Humbert gosta de meninas pequenas e não consegue interessar-se por mulheres da sua idade. Tal deve-se em grande parte a um amor antigo e perdido, quando era jovem e a sua namorada Anabela morreu de tifo. Humbert, depois desse amor, chega a casar-se com Valéria, uma mulher de origem polaca, mas sem grande entusiasmo. Divorcia-se e emigra para os Estados Unidos, onde mais tarde, depois de sair de uma casa de saúde, decide ir viver para uma cidade pequena, Ramsdale. É lá, em casa de Mrs. Haze, onde está instalado, que Humbert conhece Lolita, cedo se apaixonando fatalmente por ela. A obsessão de Humbert descambará num final trágico, que leva o amante a escrever o manuscrito para apaziguar a alma dos seus erros. A literatura é para Humbert uma mera panaceia para um coração destroçado. Mas atenção: o facto de a narrativa estar repleta de humor e sensualidade, não nos deve fazer esquecer o abuso de Lolita por Humbert. Um dos méritos de Nabokov é precisamente o de nos fazer flutuar entre sentimentos antagônicos em relação à figura e ao comportamento de Humbert. Tendemos a desculpabilizar Humbert, como nos desculpabilizamos quando somos consciente ou inconscientemente insensíveis ou cruéis com as pessoas com as quais convivemos diariamente.

A princípio, Lolita é apresentada a nós quase como uma vítima da lascívia de Humbert, porém, aos poucos, o quadro se inverte e Humbert se converte na presa de Lolita, submetendo-se a todos os caprichos da menina. Contudo, do mesmo modo que o romance de Machado de Assis "Dom Casmurro" nos lança questionamentos sobre a fidelidade de Capitu, sem nos permitir uma resposta conclusiva, posto que a narração é feita a partir da visão do protagonista, Bentinho, em "Lolita" também não podemos ter certeza até que ponto a narração de Humbert é fidedigna. Humbert sempre se dirige a nós leitor e a um juri imaginário; ele se defende; ele justifica seus atos; por isto, não podemos esperar que ele esteja nos contando toda a verdade, mas sim apenas a verdade que ele quer que vejamos.

Nabokov nos traz interessantes pensamentos acerca da juventude contemporânea à ele e à nos ainda. Lolita, uma jovem que como outras é sonhadora e aprendeu talvez cedo demais a arte do amor através dos filmes, nos remete à futilidade e obscenidade gratuita do cinema, da televisão e da cultura de massas em geral, principalmente a norte-americana. Mal sabendo o que fazia, Lolita aprendeu mecânicamente a seduzir e a brincar com o erotismo. E ela era apenas uma criança.

Apesar dos esforços de H. Humbert de levar alguma luz e instrução à sua pupila, a jovem renega todos os bons livros que seu tutor lhe apresenta e interessa-se, em literatura, somente à quadrinhos que não passam de passatempos infantis e sem conteúdo. Devemos repensar como a cultura de massas torna as pessoas padronizadas, cada uma delas apenas um outro tijolo no muro, para citar Pink Floyd. A visão de que as crianças são vítimas de pedófilos é ambígua nesta obra e deve ser também analisada com mais afinco. Nabokov nos deixa uma brilhante dúvida: Era Lolita vítima de Humbert, ou o contrário? À pontos em que a garota explorava o homem para o seu bem-querer. Onde estava a Sociedade de Senhoras Cristãs Protetoras da Moral e dos Bons Costumes que não questionam o que se passa nos filmes americanos e como eles moldam (ainda hoje) negativamente o caráter e os valores dos jovens?

Há uma crítica burra que alega ser "Lolita" uma apologia à pedofilia. Isto seria equivocado, se não fosse uma crítica absurda. Nabokov está longe de defender sexo com menores; a crítica do autor é muito mais profunda, atinge as bases da hipócrita sociedade americana, desmantela a fachada dos costumes, do puritanismo. O fato é que se "Lolita" fosse um mero panfleto pedofilista, o romance dificilmente teria se tornado um dos maiores clássicos da literatura do século XX.

O erotismo de Nabokov não se funda em cenas sexuais, mas sim no confronto entre tabu e desejo, entre vontade e repressão, entre permitido e proibido - é o conflito que todo ser humano tem de empreender, seja para aceitá-lo ou reprimi-lo.


Como de praxe, os trechos que me interessaram frisar :


“Amamo-nos com um amor precoce, assinalado por um ardor que tantas vezes destrói vidas adultas. Eu era um rapaz forte e sobrevivi; mas o veneno estava na ferida, a ferida nunca fechou e a breve trecho dei comigo a amadurecer entre uma civilização que permite a um homem de vinte e cinco anos cortejar uma rapariga de dezasseis, mas não uma de doze.
Não admira, portanto, que a minha vida adulta, durante o meu período europeu, tenha sido uma monstruosa duplicidade.
Abertamente, tinha as chamadas relações normais com certo número de mulheres terrenas com abóboras ou pêras como seios; intimamente, consumia-me uma fornalha infernal de luxúria localizada em cada ninfita que passava e que eu, como poltrão respeitador das leis, nunca me atrevia a abordar. As mulheres humanas com as quais me era consentido lidar não passavam de agentes paliativos. Estou disposto a admitir que as sensações que me causou a fornicação natural foram muito semelhantes às experimentadas pelos machos adultos normais da espécie, nas suas relações com as suas companheiras adultas normais, nesse ritmo rotineiro que faz estremecer o mundo. A diferença residia no facto de esses cavalheiros não terem tido, e eu ter tido, vislumbres de um gozo incomparavelmente profundo e intenso. O mais vago dos meus sonhos profanadores era mil vezes mais deslumbrante do que todo o adultério que o mais viril escritor de gênio ou o mais talentoso impotente poderiam imaginar. O meu mundo estava dividido. Eu tinha a noção da existência não de um, mas, sim, de dois sexos, nenhum dos quais era o meu, dois sexos que seriam ambos classificados de femininos por qualquer anatomista. Mas, para mim, através do prisma dos meus sentidos eram tão diferentes como neve e nave". Só agora racionalizo tudo isto. Entre os vinte e os trinta e poucos anos não compreendi as minhas angústias com tanta clareza. Se o meu corpo sabia o que desejava, o meu espírito repelia todos os seus apelos.”



Senhoras e senhores do júri, a maioria dos delinquentes sexuais que anelam por qualquer relação física palpitante e entrecortada de suaves gemidos, por qualquer relação física, mas não forçosamente coital, com uma rapariguinha, são inofensivos, inadaptados, passivos e tímidos desconhecidos que só pedem à comunidade que lhes consinta o seu chamado comportamento aberrante, praticamente inofensivo, que os deixe praticar os seus pequenos, apaixonados, húmidos e discretos actos de desvio sexual sem que a polícia e a sociedade lhes caiam em cima. Não somos demónios sexuais! Não violentamos, como alguns bons soldados violentam. Somos cavalheiros infelizes, brandos, de olhar humilde, suficientemente bem integrados para sabermos controlar os nossos impulsos na presença de adultos, mas dispostos a dar anos e anos de vida pela possibilidade de tocar numa ninfita. Não somos, positivamente, assassinos. Os poetas,nunca matam. ”



"Eu cito: "A rapariga normal - normal, nota -, a rapariga normal mostra-se geralmente ansiosa por agradar ao pai. Sente nele o precursor do companheiro desejado e esquivo - esquivo está muito bem, por Polónio!). A mãe sensata (e a tua pobre mãe teria sido sensata, se não tivesse morrido) encorajará o companheirismo entre pai e filha, pois compreenderá - desculpa o estilo empolado - que a rapariga forma os seus ideais românticos e acerca dos homens a partir das relações com o pai."

Ora muito bem, a que relações se refere, e que relações recomenda, este alegre livro? Volto a citar: "Entre os Sicilianos, as relações sexuais entre pai e filha são consideradas naturais, e a rapariga que participa nessas relações não é olhada com desaprovação pela sociedade a que pertence." Sou um grande admirador dos Sicilianos; são excelentes atletas, excelentes músicos, excelentes pessoas, Lo, e grandes amantes. Mas não nos desviemos do assunto. Ainda outro dia, lemos nos jornais umas tolices acerca de um homem de meia-idade, ofensor da moral, que se declarou culpado de violação da Lei de Mann e de transportar uma menina de nove anos de um estado para outro, com fins imorais - seja o que for que isso signifique. Dolores, minha querida! Tu não tens nove anos, e sim quase treze, e não te aconselho a considerares-te minha escrava transestadual."



"Penso em auroques e anjos, no segredo dos pigmentos duráveis, em proféticos sonetos, no refúgio da arte. E essa é a única imortalidade que tu e eu podemos compartilhar, minha Lolita. "