
“Existe um abismo entre aqueles que conseguem dormir e os que não o conseguem.
É uma das grandes
divisões da raça humana. ”
(Iris Murdoch
Nuns and Soldiers )
Para quem não tem costume de dormir bem, como eu, pesadelos são frequentes. A noite chega a ser, inclusive, pior na ausência deles. Nas raras madrugadas em que não tenho pesadelo, tenho mais raramente ainda sonhos ditos normais. Exceções à parte, noite sem pesadelo é noite de experiência de morte. É ausência de si e de vida, um vazio sensorial insuportável, não fosse isto paradoxo. Afinal o que não se sente pode ser suportado. Ressalto porém que suportar é muito diferente de apreciar, visto que no primeiro caso não há opção.
Acho que sempre preferi um bom livro à uma boa pessoa, no aspecto companhia mais ou menos social. Não sou lá de muita prosa, gosto antes de ouvir histórias e, de preferência, uma história que me leve pra longe da minha própria história, sem tratar-se -necessariamente- de uma fantasia.
Tempos de férias curtas (uma semana de um feriado prolongado) e eu já sabia que significavam noites em claro sem o compromisso de acordar cedo no dia seguinte. Aliás, sem o compromisso de acordar. Se o despertar seria difícil, mais ainda seria o adormecer. Já pensando nisso, pesquisei um livro que me fizesse companhia por longas horas pré-oníricas e que tratasse justamente da dificuldade de dormir, ou de permanecer adormecido – o que, em verdade, não é muito diferente. Nada mais adequado ao tema que um título 'Insônia'. Atraído também pela fama de exímio contador de histórias-para-não-se-ler-no-escuro atribuída à Stephen King resolvi me embrenhar pelo mundo fantasioso e particularmente considerado fastidioso da clássica ficção de horror.
De King eu só conhecia 'O Iluminado', ainda assim em sua versão cinematográfica. Porém, algo em seu jeito de narrar histórias me prendeu ao livro de uma forma interessante. Consegui me prender aos detalhes de cenas aparentemente sem importância como uma conversa de vizinhos na mais absoluta rotina e aprender que um bom autor esconde nas cenas mais pacatas os tesouros mais valiosos de sua obra.
Trecho do livro:
“A PRAIA era uma longa orla branca, como uma nesga de combinação de seda sob a bainha de um mar azul intenso, e achava-se totalmente vazia, exceto por um objeto a mais de sessenta metros de distância. O objeto redondo tinha o tamanho de uma bola de basquete, e encheu Ralph de um temor ao mesmo tempo profundo e — pelo menos por ora — infundado.
Não se aproxime, disse a si mesmo. É alguma coisa ruim. Uma coisa realmente ruim. É como um cão negro uivando para uma lua que só aparece de três em três anos, como sangue na pia, como um corvo empoleirado no busto de Palas bem na entrada do quarto. Você não quer se aproximar dele, Ralph, e não precisa fazê-lo porque isto é um daqueles sonhos lúcidos de que Joe Wyzer falou. Você pode simplesmente dar meia-volta e ir embora, se quiser.
Só que, querendo ou não, seus pés começaram a levá-lo para adiante, por isso talvez não fosse um sonho lúcido. Nem agradável, nem um pouco. Porque quanto mais se aproximava do objeto na praia, menos ele se parecia com uma bola de basquete.
Era de longe o sonho mais real que Ralph já vivera, e o fato de saber que estava sonhando até parecia acentuar a sensação de realidade. De lucidez. Sentia a areia fina e solta sob seus pés, morna mas não quente; ouvia o fragor das ondas ao quebrarem e se espalharem pela parte baixa da praia, onde a areia brilhava como pele morena e molhada; sentia o cheiro forte e úmido do sal e de algas que secavam, um cheiro que lhe lembrava férias de verão passadas na praia de Old Orchard, quando era criança.
Olhe aqui, amizade, se você não pode mudar este sonho, quem sabe pode apertar o botão de ejeção e saltar fora — acordar, em outras palavras, agora mesmo.
Já vencera metade da distância até o objeto na praia e não alimentava mais dúvidas quanto à sua natureza — não era uma bola de basquete, era uma cabeça. Alguém enterrara um ser humano até o queixo na areia... e Ralph subitamente percebeu que a maré estava subindo.
Não saltou fora; antes, desandou a correr. E nisto, a crista espumosa da onda lambeu a cabeça. Ela abriu a boca e começou a gritar. Mesmo em gritos agudos, Ralph reconheceu imediatamente aquela voz. Era a voz de Carolyn.
A espuma de outra onda subiu a praia e lavou para trás os cabelos colados às faces molhadas da cabeça. Ralph começou a correr mais rápido, sabendo que certamente ia chegar tarde. A maré subia depressa. Afogaria Carolyn muito antes que ele pudesse retirar seu corpo enterrado na areia.
Você não precisa salvá-la, Ralph. Carolyn já morreu e não foi em uma praia deserta. Foi no quarto 317 do hospital Derry Home. Você a acompanhou até o fim, e o som que você ouvia não era o de ondas quebrando na praia, mas o do granizo batendo contra a janela. Lembra-se?
Lembrava-se, mas corria ainda mais rápido, levantando nuvens de areia fina à sua passagem.
Mas você não vai alcançá-la nunca; você sabe como é nos sonhos, não sabe? Cada coisa para a qual se corre vira outra coisa.
Não, o poema não era bem assim... ou seria? Ralph não sabia direito. Se lembrava claramente que, no fim, o narrador fugia às cegas de alguma coisa letal
(Espiando por cima do ombro vejo a forma)
que o perseguia pelo mato... perseguia-o cada vez mais de perto.
Mas ele estava se aproximando da forma escura na areia. Mas ela não estava virando outra coisa e, quando caiu de joelhos diante de Carolyn, compreendeu instantaneamente por que não fora capaz de reconhecer, mesmo à distância, a mulher com quem estivera casado durante quarenta e cinco anos; havia algo muito errado com sua aura. Aderia à pele como um plástico sujo de tinturaria. Quando a sombra de Ralph cobriu Carolyn, os olhos dela giraram para o alto como os de um cavalo que tivesse fraturado a perna, saltando uma cerca alta. Ela respirava em ofegos rápidos e assustados, e a cada expiração saíam jatos de aura cinza-negros de suas narinas.
O fio de balão, roto e fragmentado, que subia do alto de sua cabeça era de um roxo-negro de ferida infectada. Quando ela abriu a boca para gritar outra vez, uma substância repugnante e luminosa voou de seus lábios em fios pegajosos que desapareceram quase no mesmo instante em que os olhos de Ralph registraram sua presença.
Vou salvá-la, Carol! ele berrou. Ajoelhou-se e começou a cavar a areia em volta dela como um cachorro desenterrando um osso... e, quando esse pensamento lhe ocorreu, percebeu que Rosalie, a vira-lata madrugadora da Avenida Harris, estava sentada cheia de tédio às costas de Carolyn, que gritava. Era como se o cachorro tivesse sido convocado pelo seu pensamento. Rosalie, ele observou, também se achava envolta em uma imunda aura negra. Trazia o panamá desaparecido de Bill McGovern entre as patas, e parecia ter dado prazerosas dentadas no chapéu desde que se apossara dele.
Então foi aí que o diabo do chapéu foi parar, Ralph pensou, virou-se para Carolyn e começou a cavar com maior rapidez. Até ali, não conseguira livrar sequer um ombro.
Não se importe comigo! Carolyn berrou para ele. Já estou morta, lembra-se? Cuidado com as pegadas do homem branco, Ralph! O...
Uma onda, verde-vítrea na base e branco-talhado na crista, quebrou a menos de três metros da praia. Correu areia acima até onde estavam, congelando o saco de Ralph com a água fria e submergindo momentaneamente a cabeça de Carolyn em espuma carregada de areia. Quando a onda recuou, Ralph lançou seu próprio grito horrorizado ao indiferente céu azul. A onda que recuava fizera a Carolyn, em segundos, o que os tratamentos radiativos levaram quase um mês para realizar; arrancara seus cabelos, deixara-a careca. E o alto da cabeça começava a estufar no ponto onde se elevava o fio de balão enegrecido.
Carolyn, não! — berrou, cavando com maior empenho. Agora a areia estava molhada e desagradavelmente pesada.
Não se importe, ela falou. Sopros cinza-negros saíam de sua boca a cada palavra, como o vapor sujo de uma chaminé industrial. É apenas o tumor, e não é operável, por isso não perca nenhuma noite de sono com essa parte do espetáculo. Que diabos, é longa a viagem de volta ao Paraíso, por isso não se esquente com ninharias, certo? Mas tem que ficar de olho nas pegadas...
Carolyn, não entendo o que está dizendo!
Sobreveio outra onda que molhou Ralph até a cintura e tornou a cobrir Carolyn. Quando a onda recuou, o inchaço no alto da cabeça de Carolyn começou a se romper.
Você vai descobrir logo, logo, Carolyn respondeu, e então o inchaço espocou com um ruído que lembrava um soquete batendo numa fatia de carne. Uma névoa sangrenta invadiu o ar limpo e salino, e uma horda de insetos negros do tamanho de baratas começou a vazar de dentro da cabeça. Ralph nunca vira nada parecido — nem mesmo em sonho — e sentiu-se invadir por uma repugnância quase histérica. Teria fugido, fosse ou não Carolyn, mas ficou paralisado, demasiado chocado para mover um único dedo, quanto mais se levantar e correr.
Alguns insetos negros reentraram rapidamente pela boca de Carolyn que se abria em gritos, mas a maioria descia pela face e o ombro até a areia molhada. Aqueles olhos alienígenas e acusadores não abandonavam Ralph enquanto corriam. Tudo isso é culpa sua, os olhos pareciam dizer. Você poderia ter salvado sua mulher, Ralph, e um homem melhor teria feito isso.
Carolyn! ele gritou. Estendeu as mãos para a mulher, mas recolheu-as, aterrorizado com os insetos, que não paravam de transbordar de sua cabeça. Atrás dela, Rosalie permanecia sentada em seu pequeno círculo de treva, olhando-o muito séria e agora segurava na boca o chapéu perdido de McGovern.
Um olho de Carolyn saltou fora e caiu na areia molhada, como uma colherada de geléia de uva. Os insetos projetaram-se como vômito da órbita vazia.
Carolyn! ele gritou. Carolyn! Carolyn! Car...”
( Insônia – Stephen King – Capítulo 8.1 )
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