terça-feira, 6 de outubro de 2009

As intermitências da Vida


Em momentos como as grandes despedidas e as mais lindas recepções calorosas prevalece o silêncio. Diante da despedida de uma primorosa obra de Saramago, também.


" O dia seguinte era domingo, e domingo é o dia de levar o cão a
passear. Amor com amor se paga, parecia dizer-lhe o animal, já
com a trela na boca e a postos para o passeio. Quando, já no
parque, o violoncelista se encaminhava para o banco onde era
costume sentar-se, viu, de longe, que uma mulher já se encontrava ali.

Os bancos de jardim são livres, públicos e em geral gratuitos. não
se pode dizer a quem chegou primeiro que nós, Este banco é meu,
tenha a bondade de ir procurar outro. Nunca o faria um homem de
boa educação como o violoncelista, e menos ainda se lhe tivesse
parecido reconhecer na pessoa a famosa mulher do camarote de
primeira ordem, a mulher que havia faltado ao encontro, a mulher
a quem vira no meio da sala de música com as mãos cruzadas sobre
o peito. Como se sabe, aos cinquenta anos os olhos já não são de
fiar, começamos a piscar, a semicerrá-los como se quiséssemos
imitar os heróis do faroeste ou os navegadores de antanho, em
cima do cavalo ou à proa da caravela, com a mão em pala, a
esquadrinhar os horizontes distantes. A mulher está vestida de maneira
diferente, de calças e casaco de pele, é com certeza outra pessoa,
isto diz o violoncelista ao coração, mas este, que tem melhores
olhos, diz-te que abras os teus, que é ela, e agora vê lá bem como
te vais portar. A mulher levantou a cabeça e o violoncelista deixou
de ter dúvidas, era ela. Bons dias, disse quando se deteve junto do
banco, hoje poderia esperar tudo, mas não encontrá-la aqui, Bons
dias, vim para me despedir e pedir-lhe desculpa por não ter
aparecido ontem no concerto. O violoncelista sentou-se, tirou a trela ao
cão, disse-lhe Vai, e, sem olhar a mulher, respondeu, Não tenho
nada que desculpar-lhe, é uma cousa que está sempre a suceder, as
pessoas compram bilhete e depois, por isto ou por aquilo, não
podem ir, é natural, E sobre o nosso adeus, não tem opinião,
perguntou a mulher, É uma delicadeza muito grande da sua parte
considerar que deveria vir despedir-se de um desconhecido, ainda que
eu não seja capaz de imaginar como pôde saber que venho a este
parque todos os domingos, Há poucas cousas que eu não saiba de
si, Por favor, não regressemos às absurdas conversas que tivemos
na quinta-feira à porta do teatro e depois ao telefone, não sabe nada
de mim, nunca nos tínhamos visto antes, Lembre-se de que estive
no ensaio, E não compreendo como o conseguiu, o maestro é
muito rigoroso com a presença de estranhos, e agora não me venha
para cá com a história de que também o conhece a ele, Não tanto
como a si, mas você é uma excepção, Melhor que não o fosse,
Porquê, Quer que lho diga, quer mesmo que lho diga, perguntou o
violoncelista com uma veemência que roçava o desespero. Quero,
Porque me apaixonei por uma mulher de quem não sei nada, que
anda a divertir-se à minha custa, que irá amanhã sei lá para onde e
que não voltarei a ver, É hoje que partirei, não amanhã, Mais essa,
E não é verdade que tenha andado a divertir-me à sua custa, Pois
se não anda, imita muito bem, Quanto a ter-se apaixonado por
mim, não espere que lhe responda, há certas palavras que estão
proibidas na minha boca, Mais um mistério, E não será o último,
Com esta despedida vão ficar todos resolvidos, Outros poderão
começar, Por favor, deixe-me, não me atormente mais, A carta,
Não quero saber da carta para nada, Mesmo que quisesse não lha
poderia dar, deixei-a no hotel, disse a mulher sorrindo, Pois então
rasgue-a. Pensarei no que devo fazer com ela, Não precisa pensar.
rasgue-a e acabou-se. A mulher pôs-se de pé. Já se vai embora,
perguntou o violoncelista. Não se havia levantado, estava de cabeça
baixa, ainda tinha algo para dizer. Nunca lhe toquei, murmurou,
Fui eu que não quis que me tocasse, Como o conseguiu, Para mim
não é difícil, Nem sequer agora, Nem sequer agora, Ao menos um
aperto de mão, Tenho as mãos frias. O violoncelista ergueu a
cabeça. A mulher já não estava ali.
Homem e cão saíram cedo do parque, as sanduíches foram
compradas para comer em casa, não houve sestas ao sol. A tarde
foi longa e triste, o músico pegou num livro, leu meia página e
atirou-o para o lado. Sentou-se ao piano para tocar um pouco. mas as
mãos não lhe obedeceram, estavam entorpecidas, frias, como
mortas. E, quando se voltou para o amado violoncelo, foi o próprio
instrumento que se lhe negou. Dormitou numa cadeira, quis
afundar-se num sono interminável, não acordar nunca mais. Deitado
no chão, à espera de um sinal que não vinha, o cão olhava-o. Talvez
a causa do abatimento do dono fosse a mulher que apareceu no parque, pensou. afinal não era certo aquele provérbio que dizia
que o que os olhos não vêem, não o sente o coração. Os provérbios
estão constantemente a enganar-nos, concluiu o cão. Eram onze
horas quando a campainha da porta tocou. Algum vizinho com
problemas, pensou o violoncelista, e levantou-se para ir abrir.
Boas noites, disse a mulher do camarote, pisando o limiar, Boas
noites, respondeu o músico, esforçando-se por dominar o
espasmo que lhe contraía a glote. Não me pede que entre, Claro que sim,
faça o favor. Afastou-se para a deixar passar. fechou aporta. tudo
devagar. lentamente, para que o coração não lhe explodisse. Com
as pernas tremendo acompanhou-a à sala de música, com a mão
que tremia indicou-lhe a cadeira. Pensei que já se tivesse ido
embora, disse, Como vê, resolvi ficar, respondeu a mulher, Mas
partirá amanhã, A isso me comprometi. Suponho que veio para
trazer acarta, que não a rasgou. Sim, tenho-a aqui nesta bolsa,
Dê-ma. então, Temos tempo, recordo ter-lhe dito que as pressas são
más conselheiras, Como queira. estou ao seu dispor. Di-lo a sério.
É o meu maior defeito, digo tudo a sério, mesmo quando faço rir.
principalmente quando faço rir, Nesse caso atrevo-me a pedir-lhe
um favor, Qual, Compense-me de ter faltado ontem ao concerto,
Não vejo de que maneira, Tem ali um piano. Nem pense nisso, sou
um pianista medíocre, Ou o violoncelo, É outra cousa, sim,
poderei tocar-lhe uma ou duas peças se faz muita questão. Posso
escolher, perguntou a mulher, Sim, mas só o que estiver ao meu
alcance, dentro das minhas possibilidades. A mulher pegou no caderno
da suite número seis de bach e disse, Isto, É muito longa, leva mais
de meia hora, ejá começa a ser tarde,Repito-lhe que temos tempo,
Há uma passagem no prelúdio em que tenho dificuldades, Não
importa. salta-lhe por cima quando lá chegar, disse a mulher, ou
nem será preciso. vai ver que tocará ainda melhor que
rostropovitch. O violoncelista sorriu, Pode ter a certeza. Abriu o caderno
sobre o atril, respirou fundo, colocou a mão esquerda no braço do
violoncelo, a mão direita conduziu o arco até quase roçar as
cordas, e começou. De mais sabia ele que não era rostropovitch. que
não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um
programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão
deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de
cadernos de música, de partituras. era o próprio johann sebastian bach
compondO em cöthen o que mais tarde seria chamado opus mil e
doze, obras elas quase tantas como foram as da criação. A
passagem difícil foi transposta sem que ele se tivesse apercebido da
proeza que havia cometido, mãos felizes faziam murmurar, falar,
cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a rostropovitch, esta sala
de música, esta hora, esta mulher. Quando ele terminou, as mãos
dela já não estavam frias, as suas ardiam, por issO foi que as mãos
se deram às mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora
da madrugada quando o violoncelista perguntou, Quer que chame
um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei
contigo, e ofereceu-lhe aboca. Entraram no quarto. despiram-se e
o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez,
e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte,
levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de
cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um
lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas
do violoncelo, ou então no próprio quarto. debaixo da almofada
em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a
cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que
poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável
poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e
era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os
dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia
destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se
ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela
que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente
as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu."

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