Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade. Meu pecado, minha alma. Lo-li-ta: a ponta da língua faz uma viagem de três passos pelo céu a Boca abaixo e, no terceiro, bate nos dentes. Lo. Li. Ta.
Pela manhã, um metro e trinta e dois a espichar dos soquetes; era Lo, apenas Lo. De calças práticas, era Lola. Na escola, era Dolly. Era Dolores na linha pontilhada onde assinava o nome. Mas nos meus braços era sempre Lolita.

Lolita é uma história de amor trágico entre um homem de 35 anos (Humbert Humbert, embora este nome seja um pseudônimo) e uma rapariga de 12 anos, fascinada pelo cinema e que quer um dia ser atriz, Lolita. A narrativa é-nos dada por Humbert, que narra o período da sua vida em que conheceu e amou Lolita, não sem antes nos dar conta das suas anteriores experiências amorosas na Europa. Estas anteriores experiências de Humbert, um gentleman inglês que chega à América com o intuito de dar aulas e pôr termo a uma vida desgraçada na Europa, são importantes para estabelecerem um padrão de comportamento da personagem: Humbert gosta de meninas pequenas e não consegue interessar-se por mulheres da sua idade. Tal deve-se em grande parte a um amor antigo e perdido, quando era jovem e a sua namorada Anabela morreu de tifo. Humbert, depois desse amor, chega a casar-se com Valéria, uma mulher de origem polaca, mas sem grande entusiasmo. Divorcia-se e emigra para os Estados Unidos, onde mais tarde, depois de sair de uma casa de saúde, decide ir viver para uma cidade pequena, Ramsdale. É lá, em casa de Mrs. Haze, onde está instalado, que Humbert conhece Lolita, cedo se apaixonando fatalmente por ela. A obsessão de Humbert descambará num final trágico, que leva o amante a escrever o manuscrito para apaziguar a alma dos seus erros. A literatura é para Humbert uma mera panaceia para um coração destroçado. Mas atenção: o facto de a narrativa estar repleta de humor e sensualidade, não nos deve fazer esquecer o abuso de Lolita por Humbert. Um dos méritos de Nabokov é precisamente o de nos fazer flutuar entre sentimentos antagônicos em relação à figura e ao comportamento de Humbert. Tendemos a desculpabilizar Humbert, como nos desculpabilizamos quando somos consciente ou inconscientemente insensíveis ou cruéis com as pessoas com as quais convivemos diariamente.
A princípio, Lolita é apresentada a nós quase como uma vítima da lascívia de Humbert, porém, aos poucos, o quadro se inverte e Humbert se converte na presa de Lolita, submetendo-se a todos os caprichos da menina. Contudo, do mesmo modo que o romance de Machado de Assis "Dom Casmurro" nos lança questionamentos sobre a fidelidade de Capitu, sem nos permitir uma resposta conclusiva, posto que a narração é feita a partir da visão do protagonista, Bentinho, em "Lolita" também não podemos ter certeza até que ponto a narração de Humbert é fidedigna. Humbert sempre se dirige a nós leitor e a um juri imaginário; ele se defende; ele justifica seus atos; por isto, não podemos esperar que ele esteja nos contando toda a verdade, mas sim apenas a verdade que ele quer que vejamos.
Nabokov nos traz interessantes pensamentos acerca da juventude contemporânea à ele e à nos ainda. Lolita, uma jovem que como outras é sonhadora e aprendeu talvez cedo demais a arte do amor através dos filmes, nos remete à futilidade e obscenidade gratuita do cinema, da televisão e da cultura de massas em geral, principalmente a norte-americana. Mal sabendo o que fazia, Lolita aprendeu mecânicamente a seduzir e a brincar com o erotismo. E ela era apenas uma criança.
Apesar dos esforços de H. Humbert de levar alguma luz e instrução à sua pupila, a jovem renega todos os bons livros que seu tutor lhe apresenta e interessa-se, em literatura, somente à quadrinhos que não passam de passatempos infantis e sem conteúdo. Devemos repensar como a cultura de massas torna as pessoas padronizadas, cada uma delas apenas um outro tijolo no muro, para citar Pink Floyd. A visão de que as crianças são vítimas de pedófilos é ambígua nesta obra e deve ser também analisada com mais afinco. Nabokov nos deixa uma brilhante dúvida: Era Lolita vítima de Humbert, ou o contrário? À pontos em que a garota explorava o homem para o seu bem-querer. Onde estava a Sociedade de Senhoras Cristãs Protetoras da Moral e dos Bons Costumes que não questionam o que se passa nos filmes americanos e como eles moldam (ainda hoje) negativamente o caráter e os valores dos jovens?
Há uma crítica burra que alega ser "Lolita" uma apologia à pedofilia. Isto seria equivocado, se não fosse uma crítica absurda. Nabokov está longe de defender sexo com menores; a crítica do autor é muito mais profunda, atinge as bases da hipócrita sociedade americana, desmantela a fachada dos costumes, do puritanismo. O fato é que se "Lolita" fosse um mero panfleto pedofilista, o romance dificilmente teria se tornado um dos maiores clássicos da literatura do século XX.
O erotismo de Nabokov não se funda em cenas sexuais, mas sim no confronto entre tabu e desejo, entre vontade e repressão, entre permitido e proibido - é o conflito que todo ser humano tem de empreender, seja para aceitá-lo ou reprimi-lo.
Como de praxe, os trechos que me interessaram frisar :
“Amamo-nos com um amor precoce, assinalado por um ardor que tantas vezes destrói vidas adultas. Eu era um rapaz forte e sobrevivi; mas o veneno estava na ferida, a ferida nunca fechou e a breve trecho dei comigo a amadurecer entre uma civilização que permite a um homem de vinte e cinco anos cortejar uma rapariga de dezasseis, mas não uma de doze.
Não admira, portanto, que a minha vida adulta, durante o meu período europeu, tenha sido uma monstruosa duplicidade.
Abertamente, tinha as chamadas relações normais com certo número de mulheres terrenas com abóboras ou pêras como seios; intimamente, consumia-me uma fornalha infernal de luxúria localizada em cada ninfita que passava e que eu, como poltrão respeitador das leis, nunca me atrevia a abordar. As mulheres humanas com as quais me era consentido lidar não passavam de agentes paliativos. Estou disposto a admitir que as sensações que me causou a fornicação natural foram muito semelhantes às experimentadas pelos machos adultos normais da espécie, nas suas relações com as suas companheiras adultas normais, nesse ritmo rotineiro que faz estremecer o mundo. A diferença residia no facto de esses cavalheiros não terem tido, e eu ter tido, vislumbres de um gozo incomparavelmente profundo e intenso. O mais vago dos meus sonhos profanadores era mil vezes mais deslumbrante do que todo o adultério que o mais viril escritor de gênio ou o mais talentoso impotente poderiam imaginar. O meu mundo estava dividido. Eu tinha a noção da existência não de um, mas, sim, de dois sexos, nenhum dos quais era o meu, dois sexos que seriam ambos classificados de femininos por qualquer anatomista. Mas, para mim, através do prisma dos meus sentidos eram tão diferentes como neve e nave". Só agora racionalizo tudo isto. Entre os vinte e os trinta e poucos anos não compreendi as minhas angústias com tanta clareza. Se o meu corpo sabia o que desejava, o meu espírito repelia todos os seus apelos.”
“Senhoras e senhores do júri, a maioria dos delinquentes sexuais que anelam por qualquer relação física palpitante e entrecortada de suaves gemidos, por qualquer relação física, mas não forçosamente coital, com uma rapariguinha, são inofensivos, inadaptados, passivos e tímidos desconhecidos que só pedem à comunidade que lhes consinta o seu chamado comportamento aberrante, praticamente inofensivo, que os deixe praticar os seus pequenos, apaixonados, húmidos e discretos actos de desvio sexual sem que a polícia e a sociedade lhes caiam em cima. Não somos demónios sexuais! Não violentamos, como alguns bons soldados violentam. Somos cavalheiros infelizes, brandos, de olhar humilde, suficientemente bem integrados para sabermos controlar os nossos impulsos na presença de adultos, mas dispostos a dar anos e anos de vida pela possibilidade de tocar numa ninfita. Não somos, positivamente, assassinos. Os poetas,nunca matam. ”
"Eu cito: "A rapariga normal - normal, nota -, a rapariga normal mostra-se geralmente ansiosa por agradar ao pai. Sente nele o precursor do companheiro desejado e esquivo - esquivo está muito bem, por Polónio!). A mãe sensata (e a tua pobre mãe teria sido sensata, se não tivesse morrido) encorajará o companheirismo entre pai e filha, pois compreenderá - desculpa o estilo empolado - que a rapariga forma os seus ideais românticos e acerca dos homens a partir das relações com o pai."
Ora muito bem, a que relações se refere, e que relações recomenda, este alegre livro? Volto a citar: "Entre os Sicilianos, as relações sexuais entre pai e filha são consideradas naturais, e a rapariga que participa nessas relações não é olhada com desaprovação pela sociedade a que pertence." Sou um grande admirador dos Sicilianos; são excelentes atletas, excelentes músicos, excelentes pessoas, Lo, e grandes amantes. Mas não nos desviemos do assunto. Ainda outro dia, lemos nos jornais umas tolices acerca de um homem de meia-idade, ofensor da moral, que se declarou culpado de violação da Lei de Mann e de transportar uma menina de nove anos de um estado para outro, com fins imorais - seja o que for que isso signifique. Dolores, minha querida! Tu não tens nove anos, e sim quase treze, e não te aconselho a considerares-te minha escrava transestadual."
"Penso em auroques e anjos, no segredo dos pigmentos duráveis, em proféticos sonetos, no refúgio da arte. E essa é a única imortalidade que tu e eu podemos compartilhar, minha Lolita. "
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