terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Dom Casmurro



O mal do nosso século é o romantismo.
As pessoas esperam viver como as personagens das novelas, onde tudo é lindo - e fantasioso. A arte é a mentira que torna a vida suportável, disse Nietzsche. Mas deve-se saber identificar as diferenças entre a realidade e a ficção à fim de não se cair nas armadilhas que essa confusão pode causar.
Ao encontrar um companheiro, jovens (seja em idade ou em espírito, refiro-me aqui aos que não alcançaram ainda a maturidade e conseqüentemente o discernimento entre o que deve-se viver cruamente e o que deve-se distorcer para deixar a vida suportável) esperam deste proezas só possíveis em contos de fadas. Esperam cavalos brancos, longas tranças loiras como o próprio ouro, juras de amor e cabeças de dragões à seus pés. Quando se fantasia a realidade não se pode alcançar o que se espera sem que se tenha alcançado apenas uma ilusão. A única coisa ruim de uma mentira é não ser verdade. Deve-se saber mentir, mas, antes de tudo deve-se saber que se está a mentir.
Machado de Assis já sabia disto muito bem e, ao criticar o romantismo, ele nos dá uma luz dessa mesma idéia. Machado é filosofia - para quem quiser tê-la-, ou puro romance de folhetim -para as 'queridas leitoras' despretensiosas.


Capitu olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definição de José Dias, oblíquo e dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os olhos. A voz, um tanto sumida, perguntou-me:
--Diga-me uma cousa, mas fale verdade, não quero disfarce; há de responder com o coração na mão.
--Que é? Diga.
--Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia?
-- Eu?
Fez-me sinal que sim.
--Eu escolhia... mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me perguntar isso.
--Pois sim, mas eu pergunto. Suponha você que está no seminário e recebe a notícia de que eu vou morrer...
--Não diga isso!
-- ...Ou que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não quiser que você venha, diga-me, você vem?
--Venho.
--Contra a ordem de sua mãe?
--Contra a ordem de mamãe.
--Você deixa seminário, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer?
--Não fale em morrer, Capitu!
Capitu teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no chão, inclinei-me e li: mentiroso. ”







Mais uma vez procurei um clássico para me distrair do tédio. Encontrei Dom Casmurro em alguma das minhas anotações de 'próximas leituras recomendadas' e carreguei o celular com o texto cheio de malícia e duplos-sentidos. O tédio felizmente não me perturbou durante o carnaval e o livro acabou ficando pra depois do feriado, lido com 9 horinhas. Pequeno e rápido, tipo de livro que me atiça para segundas ou mais leituras.


Dom Casmurro foi publicado em 1900 e é um dos romance mais conhecidos de Machado de Assis. Narra em primeira pessoa a estória de Bentinho que, por circunstância várias, vai se fechando em si mesmo e passa a ser conhecido como Dom Casmurro. Sua estória é a seguinte: Órfão de pai, criado com desvelo pela mãe (D. Glória), protegido do mundo pelo círculo doméstico e familiar (tia Justina, tio Cosme, José Dias), Bentinho é destinado à vida sacerdotal, em cumprimento a uma antiga promessa de sua mãe.
A vida do seminário, no entanto, não o atrai, já o namoro com Capitu, filha dos vizinhos... Apesar de comprometida pela promessa, também D. Glória sofre com a idéia de separar-se do filho único, interno no seminário. Por expediente de José Dias, o agregado da família, Bentinho abandona o seminário e, em seu lugar, ordena-se um escravo.
Correm os anos e com eles o amor de Bentinho e Capitu. Entre o namoro e o casamento, Bentinho se forma em Direito e estreita a sua amizade com um ex-colega de seminário, Escobar, que acaba se casando com Sancha, amiga de Capitu.
Do casamento de Bentinho e Capitu nasce Ezequiel. Escobar morre e, durante seu enterro, Bentinho julga estranha a forma qual Capitu contempla o cadáver. A partir daí, os ciúmes vão aumentando e precipita-se a crise. À medida que cresce, Ezequiel se torna cada vez mais parecido com Escobar. Bentinho muito ciumento, chega a planejar o assassinato da esposa e do filho, seguido pelo seu suicídio, mas não tem coragem. A tragédia dilui-se na separação do casal.
Capitu viaja com o filho para a Europa, onde morre anos depois. Ezequiel, já moço, volta ao Brasil para visitar o pai, que apenas constata a semelhança entre e antigo colega de seminário. Ezequiel volta a viajar e morre no estrangeiro. Bentinho, cada vez mais fechado em suas dúvidas, passa a ser chamado de casmurro pelos amigos e vizinhos e põe-se a escrever de sua vida (o romance).



Em Dom Casmurro, encontramos a dúvida sobre a existência do adultério de Capitu, não havendo nenhum momento que o comprove, permanecendo apenas como suspeitas. Sendo escrito em primeira pessoa, apresenta apenas a interpretação dos fatos presenciados pelo narrador-personagem, não apresentando em nenhum momento outras visões. O fato de o autor escrever o romance em capítulos curtos, com títulos explicados posteriormente e de utilizar citações de obras importantes e personagens históricos, em frases curtas, facilita a leitura e prende o leitor.
Machado de Assis permite, ao deixar o final com uma questão em aberto, que um mesmo leitor retome o livro e tire diferentes conclusões a cada vez que o releia. Porém, a questão principal do livro não é essa. Machado escreve sobre a suposta traição para que o leitor se distraia, e só os mais atentos percebam que o assunto principal da obra é a análise social da sociedade burguesa brasileira do século XIX. Para isso, Machado trabalha um micro cosmo - Casa de D. Glória- para refletir sobre o macro cosmo - a sociedade. Assim, cada habitante da casa representa um tipo social da época.


Quando Bento vai mudar da casa de sua mãe, na Rua de Matacavalos, para a Praia da Glória, ele constrói uma casa idêntica aquela em que viveu desde criança, colocando inclusive quatro medalhões de quatro imperadores notórios na sala de estar: Nero, Augusto, Massinissa e César que, segundo Bento, o sugerem a escrita do romance.
Os imperadores possuem algo muito interessante em comum: acusaram suas mulheres de adultério e mataram-nas, mesmo sabendo que elas eram inocentes. César disse: " minha mulher não basta ser inocente, ela tem que parecer inocente". Isso nos dá mais uma pista sobre a suposta traição no romance.

"Até hoje é motivo de aceso debate se Capitu traiu ou não o marido com seu melhor amigo, Escobar. A questão, no fundo, é irrelevante, pois para entendermos o perfil psicológico de Bentinho, basta sabermos que ele acredita ter havido adultério.
Também é irrelevante se o fato que desencadeou o ciúme - a forma intensa com que Capitu fitava Escobar no velório deste, perturbando Bentinho a ponto de impedi-lo de pronunciar o discurso fúnebre – ocorreu na realidade ou apenas existiu na imaginação do personagem.
No despertar do ciúme, teve papel certamente preponderante o sentimento de culpa que carregava Bentinho por não cumprir a promessa de sua mãe, de tornar-se padre e daí o ressentimento inconsciente contra Escobar, que o ajudara a dissuadir a mãe de seu intento, permitindo seu casamento com Capitu.
A culpa e o ressentimento eram tão fortes que Bentinho esteve a ponto de suicidar-se. Não o fez e depois de ter perdido a mulher e humilhado a ela e ao filho, se tornou o Dom Casmurro do título."
( Ciúme na Literatura - Wikipédia )

Agora, aos comentários e observações pessoais sobre a leitura:

E depois, de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou resumir.
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passa do sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, e acaso para reconciliar-se com o céu,--compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
--Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés...
--Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
--Mas, Senhor...
--Nada! nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
--Ouvi agora alguns ensaios!
--Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a além da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Aden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem c mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.
--Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: "Muitos são os chamados, poucos ao escolhidos". Deus recebe eu ouro, Satanás em papel.
--Tem graça...
--Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia. quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver algum, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...
(CAPÍTULO IX / A ÓPERA )

Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo.
Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador! toda a gente chegava as janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança: "O Imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? Que não será?" A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, --não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos,--pedia a minha mãe que me não fizesse padre, -- e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não.
--A medicina, por que lhe não manda ensinar medicina?
--Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade..
--Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias. combatê-las, vencê-1as... A senhora mesma há de ter visto milagres Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira: mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?
-- Mamãe querendo.
-- Quero, meu filho. Sua Majestade manda.
Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro: o Imperador entrava no coche. inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: "A medicina, a nossa Escola." E o coche partia entre invejas e agradecimentos.
Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros.


Terás entendido que aquela lembrança do Imperador acerca da medicina não era mais que a sugestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações. Vá que fosse para S. Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitu.
( CAPÍTULO XXIX / O IMPERADOR e CAPÍTULO XXX / O SANTÍSSlMO )


- Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada." Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e disse-lhe,--para dizer alguma cousa,--que era capaz de os pentear, se quisesse. ”
(CAPÍTULO XXXII / OLHOS DE RESSACA )

Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico.”
(CAPÍTULO XIXI / O PENTEADO)
Aqui há uma singela intertextualidade com Lolita, de Nabokov. Singela, porém compensadora aos que já tiveram a oportunidade de conhecer o universo que este outro autor apaixonado pela beleza das ninfas nos deixou.
Alguém certo dia disse que as grandes obras só podem ser percebidas como tais quando passamos a perceber todos os seus detalhes minuciosos e por isso mesmo engrandecedores. Seja a intertextualidade, sejam referências simples, que passariam despercebidas aos menos atentos, depois de ler tal afirmação, passei a procurar com muito mais afinco detalhes que antes me passavam despercebidos. Tenho me disciplinado para reaprender a ler, ou pelo menos tentado. De qualquer forma, desde então, ler tornou-se para mim ainda mais gratificante.
O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça consigo mesma, uma vez que, desde manhã, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça, e, para dizer tudo, quis provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe levemente na mão direita, depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e trêmulo. Era a idéia com mãos. Quis puxar as de Capitu, para obrigá-la a vir atrás delas, mas ainda agora a ação não respondeu à intenção. Contudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava ninguém- não vivia com rapazes, que me ensinassem anedotas de amor. Não conhecia a violação de Lucrécia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela artinha do Padre Pereira e eram patrícios de Pôncio Pilatos. Não nego que o final do penteado da manhã era um Brande passo no caminho da movimentação amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrário deste. De manhã, ela derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os lances diferiam; em outro ponto, parecendo haver repetição, houve contraste.
Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro, começava a estar tão alvoroçado, que não pude ter toda a consciência dos meus atos; mas concluo que sim, porque ela recuou e quis tirar as mãos das minhas; depois, talvez por não poder recuar mais, colocou um dos pés adiante e o outro atrás, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabeça não quis ceder também, e caída para trás, inutilizava todos os meus esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo a lição do Cântico, não me acudiu estender a mão esquerda por baixo da cabeça dela; demais, este gesto supõe um acordo de vontades, e Capitu, que me resistia agora, aproveitaria o gesto para arrancar-se à outra mão e fugir-me inteiramente. Ficamos naquela luta, sem estrépito, porque apesar do ataque e da defesa, não perdíamos a cautela necessária para não sermos ouvidos lá de dentro; a alma é cheia de mistérios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar; até que cansou; mas então foi a vez da boca. A boca de Capitu iniciou um movimento inverso, relativamente à minha, indo para um lado, quando eu a buscava do outro oposto. Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e bastaria um pouco mais... ”
(CAPÍTULO XXXVII / A ALMA É CHEIA DE MISTÉRIOS)

A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente.
(CAPÍTULO LXVI / INTIMIDADE )

Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rebeca e não tocava inteiramente mal. Na ocasião em que ia passando, executava não sei que peça. Parei na calçada a ouvi-lo (tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me, e continuou a tocar. Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram, a despeito da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras à navalha. Perdeu-os sem perder uma nota- ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar francamente à porta da loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o interior da casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor no cabelo. Era a mulher dele, creio que me descobriu de dentro, e veio agradecer-me com a presença o favor que eu fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizê-lo com os olhos. Quanto ao marido, tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face ao instrumento, passava a alma ao arco, e tocava, tocava...
Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei pelo corredor e subi as escadas sem estrépito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta máxima, que os compiladores podem tirar daqui e inserir nos compêndios de escola. A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu duas barbas naquela noite, que eram o pão do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um transeunte. Supõe agora que este, em vez de ir-se embora, como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a enamorar-lhe a mulher, então é que ele, todo arco, todo rebeca, tocaria desesperadamente. Divina arte! ”
( CAPÍTULO CXXVII / O BARBEIRO )

Outra intertextualidade interessante foi percebida entre o capítulo que Machado de Assis chama de O Barbeiro e o conto O Moço do Saxofone, de Lygia Fagundes Teles. Em ambos os textos a atitude aparentemente passiva e até mesmo comovente do homem enganado pela mulher nos salta aos olhos e nos faz pensar sobre a traição.

'Dica' final do livro:
Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti.
(CAPÍTULO CXLVIII / E BEM, E O RESTO? )

A Rede Globo produziu uma adaptação tosca, porém muito comercial de Dom Casmurro. O resultado ficou estranho, e provavelmente os espectadores que não sabem quem foi Machado de Assis não entenderam nada da história.
Porém, na minha opinião, a principal falha da microssérie Capitu é a falta da ambiguidade do texto machadiano. Assistindo somente à versão da Globo deduz que Capitu traiu e pronto, há uma parcialidade e uma presunção desagradáveis. Todo o mistério instigante da obra é deixado de lado, o que deixa grande parte da grandiosidade da obra oculto.

Um comentário:

  1. Adorei amor!
    Obrigada por acrescentar à minha sabedoria detalhes importantes como o dos Imperadores, e o das intertextualidades.
    Adorei o livro, confesso que estou com uma grande dúvida sobre a traição, mas isso não é o mais importante...
    Aproveitando o comentário: sobre o post do Ciumento de Carteirinha, adorei também, e também me 'ajudou' bastante.
    Detalhes são importantes, realmente.
    Enfim, beijo amor.

    Bi

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