terça-feira, 14 de julho de 2009

Incidente em Antares


Lembro que sempre ficava curiosíssimo ao ouvir o nome de Érico Veríssimo. Isso porque sou fã apostólico do Luís Fernando Veríssimo, grande escritor cotemporâneo. Coloquei essa associação do Érico ao seu filho, o Luís Fernando, de lado para começar a minha primeira leitura de uma obra sua - por sinal, sua última produzida. Porém, no decorrer da leitura, não pude me manter indiferente à algumas características comuns aos dois Veríssimos. Senso de humor foi pra mim uma das mais nítidas, pois logo lembro de humor ao pensar em L. Fernando Veríssimo. Com a diferença que se para o pai, Érico, o humor é uma ferramenta para sua literatura, um modesto tempero para seus pratos, para o L. Fernando o humor é tão forte, tão concreto que quase passa a ser o prato principal.
Me lembro também que fui de certa forma preconceituoso com o Érico. Meu interesse por estudar de fato sua obra foi quase forçado - Incidente em Antares é quesito obrigatório no meu vestibular-, e talvez isso tenha contribuído para minha má vontade inicial. À princípio, não me parecia poder ser tão célebre um livro que tinha como eixo (segundo a contra-capa do próprio livro) a 'ressurreição' de sete cadáveres, numa sexta-feira treze somente com o fim de serem os próprios interessados em seu direito de serem enterrados. Contudo, se à princípio à obra não me despertou grande interesse, inversamente proporcional foi o proveito que tirei deste livro.
Érico V. não se limitou a fazer apenas uma grande obra literária, traçando também um grande painel social, cultural, religioso e histórico da sociedade - seja da sociedade antarense, bem como da sociedade brasileira. E os valores postos em julgamento na obra não se mostram vigentes somente na sociedade brasileira do século passado, como também na deste e com certeza dos próximos séculos vindouros. Pessoalmente, considero esta capacidade de tratar de um assunto que será comum à qualquer povo, em qualquer época, um dos pontos que contam para garantir à uma obra o posto de clássica dentro de determinada arte. Se se tratar então de uma obra brasileira, tratar de preconceitos, de valores vigentes (apesar de decadentes), de abusos por parte das autoridades políticas e militares, da ignorância, das mazelas a que o povo se vê entregue pela política e pela fé, são fatores que por si só já devem garantir grandeza à uma obra.

Interessei-me por certos trechos do livro, e aqui vão alguns deles:

Como observa o Pe.Pedro-Paulo ao Pe. Gerôncio,numa conversa,“comunista é o pseudônimo que os conservadores,os conformistas e os saudosistas do fascismo inventaram para designar simplisticamente todo o sujeito que clama e luta por justiça social”. Numa outra passagem,esse mesmo padre lembrou ao delegado Inocêncio a postura “rebelde” de Cristo em face das arbitrariedades impetradas pela sociedade da época, dominada pelo império romano, e desafia o delegado torturador de Joãozinho Paz:
“-Suponhamos que Jesus Cristo tenha mesmo voltado... Delegado Pigarço, não seria prudente mandar seus investigadores procurar o Filho do Homem? Olhe que esse indivíduo é perigoso... um subversivo socializante, um terrorista com antecedentes criminosos, com ficha negríssima no DOPS de Pôncio Pilatos. Lembre-se do que ele andou dizendo e fazendo contra o grande Estabelecimento Romano... Inocêncio põe-se de pé, a cara contraída. Mas o jovem padre prossegue: -Prenda Jesus, delegado, prenda-o o quanto antes! Interrogue-o. Faça-o confessar tudo, dizer o nome de todos os seus discípulos e cúmplices... Se ele não falar,torture-o em nome da Civilização Cristão Ocidental!” (p.328).
Essa crítica é baseada na morte de uma das personagens, que foi torturada pela polícia (injustamente) com o pretexto de ser um comunista subversivo.

Outra passagem que achei interessante, essa mais emocionada, foi a conversa de duas prostitutas do livro. Erotildes (já morta) e Rosinha, sua amiga e companheira de trabalho enquanto viveu:

"Rosinha baixa a cabeça e conta: – Ontem de noite uns meninos me agarraram a força e me levaram pra um terreno baldio. Uns cinco ou seis... Primeiro me tiraram toda a roupa, até me rasgaram um vestido quase novo. Me derrubaram, se puseram em mim, não houve porcaria que não fizessem comigo. Depois foram embora dando risadas e não me deram um mísero vintém. – Conhecidos? – Alguns acho que conheço de vista. Meninos de boas famílias. – Às vezes são os piores. – Mas não sei por que fizeram isso, logo comigo! Não precisavam me agarrar a unha, me maltratar. Se dissessem que estavam sem dinheiro, eu dava de graça. Mas não. Pareciam uns animais. Em vez de virem de um a um, vinham de dois e até de três. Uns porcos! Erotildes fita na amiga os olhos gelatinosos e diz baixinho: – Pois eu te digo que estou contente por ter morrido. A gente fica livre pra sempre de todas essas tristezas e vergonhas. – Já pensei em morrer. Em tomar veneno. Mas não tive coragem... – É pecado a gente se suicidar. Vai pro inferno. – Mas o inferno não será aqui mesmo? De súbito Rosinha desata o choro. Erotildes ergue a mão como para acariciar a cabeça da amiga, mas hesita em tocá-la. – Não há de ser nada – murmura. – Não hai bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe, como dizia a minha falecida mãe. Erotildes pega o vaporizador e borrifa a própria cara de perfume. Depois diz: – Bom, já te vi. Tenho ainda quase três horas livres pela frente. Acho que vou ver a Irmã Bonifácia, aquela enfermeira que foi tão boa comigo quando eu estava no hospital. Até logo, Rosinha, Deus te ajude! Encaminha-se para a porta. – Erotildes? Tu já viste Deus? A morta se volta: – Ainda não. Decerto só vou ver Ele quando me enterrarem como cristão. Rosinha limpa tremulamente as lágrimas do rosto com as pontas dos dedos. – Vou te pedir um favor... – Qual é? – Diz pra Deus que me dê uma boa morte, já que não me deu uma boa vida."

Obra excelente, gostei muito. Espero agora anciosamente para ler as outras obras de Érico Veríssimo. Agora sim, por puro prazer de ler.

Um comentário:

  1. Aêee! Já tinha visto que alguém tinha lido esse livro e feito uma resenha, mas não me lembrava quem. Me fez lembrar um pouco As Intermitências da Morte de José Saramago.
    Muito bom Pabls, continue fazendo resenhas!

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