
“... A violência do mundo patriarcal aproxima muito Herculano Lopes de um outro mineiro, Autran Dourado, embora este possua uma exuberância narrativa muito distante do estilo cru e árido do autor de O Último Conhaque. Quer dizer, os problemas são similares, as histórias se passam num tipo parecido de cidade, mas a técnica é bem diferente. Ambos são mundos ficcionais da memória, do olhar lançado para trás, porém o universo de Dourado se tinge de mitos e profundidade, é mundo de grandeza e decadência, o de Herculano Lopes é inundado de horror, de pobreza onde, imprensadas entre o rural e o urbano, as pessoas são confrontadas com uma coisa simples e clara: a injustiça. A eficácia de sua denúncia é que, mesmo sabendo de tudo isso, o leitor ainda assim fica contristado e envolvido.” ( Alfredo Monte, A Tribuna, Santos, SP)
Naquele início de madrugada do sexto dia de sua chegada a Santa Marta para o enterro de sua mãe, Maria Lucas, fulminada por um ataque cardíaco, e quase trinta anos depois da morte de seu pai, o médico Juko Lacena, assassinado com três tiros nas costas, seu filho, já com quase quarenta anos, estava ali na antiga casa, na sala, recostado à poltrona que fora de sua mãe e onde ela, depois do crime- e até mesmo antes dele-, passara a maior parte da vida. Já havia tomado muito conhaque, o estômago doía, e ele sentia uma incrível vontade de chorar. Tudo isso porque, contrariando a vontade dela, várias vezes repetida, ele voltara àquela cidade e, sobretudo, àquela casa onde muito de sua vida, da parte mais entranhada de sua vida, estava guardado naquelas gavetas, que-e isso o apavorava- ele não conseguia abrir, como se uma força misteriosa o impedisse. E como lutar contra ela? Ele não sabia. E, já bêbado e muito só, aquele homem, entre tantas outras lembranças, começou a recordar-se do dia em que a mãe saíra para faze compras e, ao voltar, os encontrara, a ele e a Rita (sua irmã), no quarto cuja entrada lhes era proibida: o do casal. E os dois estavam com o guarda-roupa aberto e já vestidos: ele, com o terno azul de seu pai, o cachimbo à boca, e Rita, sorrindo olhava-se no espelho já de batom passado, várias cores de sombra nos olhos, e começava a pintas as unhas. A princípio, apara alívio de ambos, a mãe nada disse, e chagou até a esboçar um sorriso. Mas, em seguida, após ir ao terreiro e de lá voltar com uma vara, deu-lhes uma surra, até que, cansados de tanto chorar, ele e Rita apenas soluçavam. E, como se não bastasse, ela ainda os trancou no quarto dos fundos, muito escuro e onde, nas noites de sexta-feira, aparecia a alma de um ex-promotor de justiça, o famoso Bode Velho que, antes de voltar para sua terra, Montes Claros, morara naquela casa, onde, em várias ocasiões – para o espanto de todos em Santa Marta -, se transformara em lobisomem: “a própria imagem do cão”, segundo diziam. E o homem, enchendo mais uma vez o copo, lembou-se também da vez em que ele, andando distraído pelo terreiro, encontrou a cobra de duas cabeças vista na tarde do dia anterior pela empregada que, em vez de matá-la, preferira lhe jogar água fervente, “pra sofrer mais”, ela disse. E a cobra, já quase morta pelas queimaduras, estava sendo picada por centenas de formigas, que numa fúria incontrolável, acabaram por liquidá-la. E aquela cena ele, mesmo depois de tantos anos, vivenciava com tanta clareza quanto se tivesse acontecido há poucas horas e as formigas ainda continuassem ali, acabando de consumar a tragédia. E, apertando os olhos e querendo pensar em outras coisas, o homem tomou mais um conhaque – um Macieira, finalmente!-, a dor no estômago continuou, e ele falou a si próprio e repetiu em voz alta que, tão logo amanhecesse -tivesse ou não aberto as gavetas-, iria procurar sua prima, entregar-lhe as chaves da casa e partir daquele lugar, pois não mais o tolerava. Então, já completamente tonto, adormeceu, enquanto lá fora, nas ruas, o silêncio ficou tão grande que nem Maria Teresa (sua prima), acostumada a ele e também sozinha, conseguia suportar. E ela, deixando-se levar pelo desassossego, puxou o cobertor sobre o corpo. E sentiu medo. Muito medo de ouvir outra vez o piar da coruja que, quase todas as noites, assustando-a cada vez mais, pousava numa árvore próxima à janela de seu quarto. Isso enquanto suas mãos, quentes e ásperas -e fora de controle-, começaram a acariciar os seios. E todo seu corpo tremia, e o ventre, quase molhado, começava a aceitar, muito timidamente, o contato dos próprios dedos, e ela, com medo daqueles instantes tornarem-se eternos, sentiu que, pela primeira vez, alguém poderia ser dono do seu coração.
Carlos Herculano Lopes, O Último Conhaque capítulo 28)